A partir do século IV, deu-se o importante acontecimento das invasões bárbaras no Império Romano, que contribuiu fortemente para constituir a Cristandade da Idade Média; os novos povos, a princípio repelidos pelos habitantes do Império, acabaram fundindo-se com estes, resultando daí o cristão medieval, que configurou a Igreja da sua época.
A origem de tais invasões está no fato seguinte: os hunos, saindo dos desertos da Mongólia (Ásia), conquistaram uma parte da China, mas foram impelidos para o Ocidente por outros povos invasores. Entraram, portanto, na Europa Oriental e Setentrional, onde estavam alojados povos não conquistados pelos romanos: os godos, os alamanos, os francos, os lombardos… Estes, cedendo à pressão dos hunos, tiveram que invadir o Império Romano. As primeiras tentativas foram repelidas pelos romanos; mas na segunda metade do século IV o Império estava enfraquecido do ponto de vista militar e administrativo, de modo que não pôde resistir.
Em 376, os visigodos atravessaram o Danúbio; entraram na Grécia, na Ilíria (Iugoslávia) e chegaram até Milão (Itália). Não se consideravam conquistadores do Império, mas aliados dos romanos. Os vândalos, porém, os ostrogodos, os lombardos… se mostraram mais ferozes, de modo a acelerar a derrocada do Império. Roma caiu finalmente em 476 sob os golpes dos ostrogodos, chefiados por Teodorico (471-526); um dos generais deste, Odoacro, destituiu o último Imperador, Rômulo, e fez-se proclamar rei da Itália.
Vejamos qual a atitude dos cristãos frente aos novos povos.
O receio dos cristãos
A população do Império Romano, embora resultasse da justaposição de povos diferentes vencidos pelo Império, sentia-se una, pois compartilhava a mesma civilização, que era chamada “a România”. Esta era oposta à barbáries – palavra onomatopaica que tentava reproduzir a rudez e a dureza características dos invasores (bar + bar). Aliás, os romanos já haviam sido considerados bárbaros pelos gregos; transferiam então este tratamento para os germanos.
Para os romanos feitos cristãos, as invasões bárbaras eram motivo de especial pavor. Com efeito; para os discípulos de Cristo, Roma fora, de certo modo, um esteio da propagação do Evangelho: suscitara a paz romana e a fácil comunicação entre diversos povos, favorecendo assim a pregação missionária. – Verdade é que o Império Romano pagão e perseguidor é mal visto em certos escritos do Novo Testamento, que identificam Roma com a Babilônia prevaricadora; ver 1Pd 5,13; Ap 17,5. Todavia, apesar das perseguições, os cristãos eram beneficiados pelas estradas e pela unidade política do Império, de modo que alguns escritores da Igreja atribuíam a este uma função providencial. Em conseqüência, muitos pensadores julgavam que, se Roma caísse sob os golpes dos bárbaros, o mundo acabaria; tal era a ligação que estabeleciam entre Roma e a história. O escritor Latâncio, por exemplo, escrevia no começo do século IV:
“É visível que o mundo está ameaçado de queda próxima. A única circunstância que pode atenuar nossos receios, é o fato de que a cidade de Roma ainda subsiste em estado próspero. Mas, quando esta capital do universo for vencida e dela não restar senão um acervo de ruínas…, não teremos mais nenhum motivo para duvidar da iminência do fim do mundo. Esta cidade por si conserva e sustenta tudo” (Instituições Divinas VII, XXV, 5).
Podemos sentir o estado de ânimo temeroso dos cristãos através das palavras de S. Jerônimo (? 420)), que foi um dos homens mais eruditos do seu tempo:
“Meu coração estremece pensando nos desastres do nosso tempo. Eis mais de vinte anos que entre Constantinopla e os Alpes Julianos o sangue é derramado diariamente… Quantas damas, quantas virgens de Deus, quantos corpos nobres e delicados não foram joguetes dessas feras selvagens? Os Bispos são levados em cativeiro, os sacerdotes assassinados juntamente com clérigos de diversas Ordens; as Igrejas são devastadas, os cavalos amarrados junto aos altares de Cristo como em estrebaria; os despojos dos mártires são extraídos da terra. Em toda parte, há luto, gemidos e a sombra da morte. O mundo romano desmorona, e a nossa cabeça orgulhosa não se dobra… Tivesse eu cem línguas, cem bocas, uma voz de bronze, nunca, nunca eu poderia contar tantas desgraças!” (epístola IX 16).
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Em 410, o visigodo Alarico penetrou e saqueou Roma. S. Jerônimo comenta em 411:
“Hoje quis aplicar-me ao estudo de Ezequiel; mas, no momento preciso em que comecei a ditar, senti tal perturbação pensando na catástrofe do Ocidente – e principalmente na devastação de Roma – que, como diz o provérbio, as próprias palavras me faltaram. Por muito tempo fiquei em silêncio, bem consciente de que estamos na época das lágrimas.
Neste mesmo ano, depois que expliquei três livros de Ezequiel, uma subitânea invasão dos bárbaros… desencadeou-se como uma torrente sobre o Egito, a Palestina, a Fenícia, a Síria, tudo arrastando consigo. Foi graças à misericórdia de Cristo que escapei das mãos deles” (ep. 126,2).
No citado comentário sobre Ezequiel, ainda escreve S. Jerônimo:
“Quem teria acreditado que essa Roma, construída sobre vitórias obtidas em todo o universo, viesse um dia a desmoronar?… Quem teria acreditado que, para os seus povos, Roma viria a ser mãe e sepulcro?… Que todas as regiões do Oriente, do Egito e da África se cobririam de escravos (homens e mulheres) vindos de Roma, outrora senhora do universo?” (Prefácio ao livro III, XXV).
Todavia o horror dos cristãos havia de ceder a outros sentimentos.
Olhar mais otimista
O pavor foi substituído por confiança e esperança em virtude dos seguintes fatores:
1) Os invasores iam penetrando cada vez mais, e o mundo não acabava… Os cristãos foram vendo que se esboçava uma nova situação geral e que o Senhor parecia exigir deles que a assumissem, em vez de se fecharem na perplexidade. – Uma nova atitude aflorava à mente dos cristãos, sugerida pelo sacerdote Salviano de Marselha (? 480): em vez de deterem sua atenção apenas na barbárie dos novos povos, fizessem os cristãos o seu exame de consciência; não bastava professar a fé católica, para esperar as bênçãos de Deus; era preciso viver de acordo com essa fé; Salviano aponta então os vícios da civilização romana, dada aos prazeres e espetáculos fúteis; os habitantes do Império são coniventes com graves abusos, como a embriaguez, a luxúria, a mentira, os falsos juramentos, o orgulho… Ao contrário, dizia o escritor, os invasores têm seus traços de vida positivos: amam uns aos outros, ao passo que os romanos se odeiam mutuamente; são castos, principalmente os godos e os saxões; ignoram as impurezas do circo e do teatro; o deboche, entre eles, é crime, enquanto para os romanos é motivo de vã glória. Há pobres viúvas e órfãos que escolheram viver em meio aos godos e não se dão por frustrados. Os bárbaros são hereges, sim (professavam o arianismo), mas isto é culpa dos romanos, que lhes transmitiram a heresia.
Os historiadores reconhecem exagero nos dizeres de Salviano. Pouco depois São Cesário, Bispo de Arles (? 452), descreveria vivamente as depravações dos bárbaros. Como quer que seja, as observações de Salviano evidenciam que entre os cristãos ia ocorrendo uma sadia reconsideração dos acontecimentos; esta levava à emenda de vida pessoal e não ao desânimo. Os cristãos deveriam adaptar-se à nova situação e procurar continuar a trabalhar, salvando dos escombros o que pudessem salvar.
2) Os bárbaros levaram ao Império Romano envelhecido seus valores próprios: eram povos de mentalidade inculta, infantil e carente; reconheciam a insuficiência de sua civilização e de suas crenças e abriam-se com facilidade para o patrimônio da cultura romana, que evidentemente era superior. Ao lado dos seus defeitos morais, tinham seus traços de dignidade: acentuado sentimento de honra, espírito de solidariedade com a família e a sua estirpe, matrimônio rigidamente monogâmico, fidelidade à palavra empenhada… A Igreja bem poderia valorizar esse patrimônio moral e lançar dentro dos seus moldes as sementes do Evangelho.
3) As invasões bárbaras contribuíam para extinguir a cultura pagã do antigo Império Romano, que conservava seus redutos ainda no século VI. A mensagem de Cristo assumida pelos novos povos permitiria construir um mundo relativamente novo, mais homogeneamente cristão. Para conseguir isto, a Igreja dispunha de elementos importantes: grandes Bispos, dotados de irradiação, e os mosteiros, que eram focos de espiritualidade, cultura e missão evangelizadora.
A evangelização dos bárbaros
Quase todos os povos germânicos reconheciam três divindades principais: Ziu (deus supremo do céu), Donar ou Thor (deus do trovão) e Wodam ou Odin (deus das tempestades e dos mortos). As suas crenças religiosas, porém, estavam abaladas por terem deixado as suas terras de origem e terem entrado em contato com civilizações e religiões estrangeiras. Estavam, portanto, abertos ao anúncio de uma mensagem religiosa mais sólida.
Não é possível reconstituir com minúcias o processo de conversão de cada povo germânico ao Cristianismo. Apenas se podem apresentar os seguintes traços seguros:
1) Tal conversão não se deu, como na antiguidade, em virtude de ação missionária dos cristãos junto aos familiares e amigos, mas ocorreu por efeito da decisão do chefe da respectiva tribo; os súditos costumavam seguir o exemplo do chefe.
2) Entre os germanos, a vida civil e o culto religioso estavam estritamente associados entre si. Por isto a conversão de uma tribo não era apenas um fato religioso, mas constituía também um acontecimento político.
3) Na conversão dos germanos ao Cristianismo, antes de Carlos Magno, não houve recurso a meios violentos. Todavia algumas tribos, como as dos visigodos e dos vândalos, usaram de violência contra os cristãos.
4) Os germanos, com exceção dos francos, fizeram-se cristãos primeiramente sob a forma do arianismo, seguindo o exemplo dos visigodos. Algumas hordes permaneceram arianas até o seu ocaso (ostrogodos, vândalos); outras o abandonaram para tornar-se católicas, ainda que tardiamente (visigodos, suevos, burgúndios…).
Examinemos em particular a conversão dos visigodos e a dos francos.
Os visigodos
Os visigodos foram os primeiros povos germânicos a abraçar o Cristianismo. No século III alguns de seus indivíduos se tornaram católicos por obra de prisioneiros ou de missionários com quem tiveram contato. Todavia o grande arauto da fé, entre eles, foi Úlfilas (311-383); ordenado Bispo dos godos por Eusébio, Bispo ariano de Nicomédia, pregou durante mais de quarenta anos a fé ariana entre os seus compatriotas; traduziu para o godo quase toda a Bíblia e admitiu a língua goda na liturgia. Úlfilas assim trabalhou com o apoio dos Imperadores Constâncio (337-361) e Valente (364-378), que procuravam fazer do arianismo a religião do Estado.
Os visigodos constituíram um foco missionário do mundo germânico oriental, de modo que, sob o seu influxo, todos os povos germânicos orientais acolheram a doutrina de Cristo sob a forma ariana.
Os francos
Dentre as tribos germânicas, a dos francos havia de desempenhar papel especialmente importante na história da Igreja. Na segunda metade do século V passaram das margens do Reno para a Gália. O seu rei Clodoveu ou Clóvis (481-511) casara-se com a princesa católica Clotilde. Esta o persuadiu de mandar batizar os dois filhos. Mais tarde, Clodoveu achou-se em difícil situação ao enfrentar o exército dos alamanos; fez então o voto de tornar-se cristão, caso vencesse. Tendo sido bem sucedido, recebeu o Batismo das mãos do Bispo S. Remígio de Rheims no Natal de 496, juntamente com 3.000 homens do seu séquito. Entre os motivos da decisão do rei, estava o desejo de obter o apoio dos Bispos para o jovem reino franco.
A conversão de Clóvis e dos francos teve enorme importância: visto que os outros chefes germânicos eram pagãos ou arianos, Clóvis apresentou-se aos povos católicos do Ocidente como o protetor da religião ortodoxa. Este fato mereceu, para a França, o título de “filha mais velha da Igreja”. Clóvis, também dito “o novo Constantino”, e seus sucessores tiveram grande ingerência nos assuntos internos da Igreja – o que equivale a um certo cesaropapismo no Ocidente. A corte desses reis não dava o exemplo de autêntica vida cristã, pois era afetada por crimes e impudicícia; a Igreja empenhou-se por salvar da decomposição o reino dos francos e fazê-lo baluarte da história dos próximos séculos.
Prof. Felipe Aquino
Fonte: cleofas.com.br
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