sábado, 6 de agosto de 2022

A Reforma Luterana


Vozes em defesa da fé

1. Quando foi que começou o Movimento Protestante?

Depois de afixar, a 31 de outubro de 1517, as suas teses atacando o ensino tradicional do Cristianismo, a 18 de abril de 1520, Martinho Lutero rompeu com a Igreja Católica, e começou a edificar uma nova Igreja de acordo com as suas ideias.

2. Protestantes não são aqueles que protestam contra os erros de Roma?

Muitos protestantes hoje em dia aceitariam essa descrição da sua posição. Mas aquilo que eles acreditam ser erros de Roma não são realmente erros, se na verdade são ensinamentos da Igreja Católica. Acrescento esta última condição porque muitas doutrinas têm sido atribuídas à Igreja Católica, as quais ela nunca ensinou, ao passo que outras têm sido interpretadas de um modo que ela mesma condenaria. Por mal-entendido, muitos escritores protestantes têm gasto o seu tempo e o dos seus leitores refutando laboriosamente aquilo que a Igreja Católica absolutamente não ensina! E a sua linha de aproximação aos problemas do Catolicismo mal necessita de revisão.

3. Qual foi exatamente a origem do termo “Protestante”?

A palavra deriva do célebre “Protesto” tido pelos príncipes germânicos na Dieta de Espira em 1529. Grande número de príncipes alemães haviam-se aproveitado da revolta religiosa de Martinho Lutero para conseguir a independência política dos seus Estados. Naturalmente, em troca, eles apoiaram o Luteranismo como uma grande força entre o seu povo para os desprender de antigos laços, e começaram suprimindo a religião católica dentro dos seus territórios. Ora, o Decreto da Dieta de Espira concedia liberdade religiosa a todo aquele que já houvesse abraçado o Luteranismo nos Estados dos príncipes germânicos, mas exigia tolerância para com os católicos residentes dentro dos limites deles. Os príncipes luteranos protestaram não conceder tolerância aos católicos, e disseram que a religião do povo deve ser a mesma que a dos seus príncipes. “Cujus regio, illus religio”, diziam aqueles príncipes. “Seja qual for o governante, dele deve ser a religião”. Por outras palavras, os príncipes germânicos exigiam o direito de impor ao seu povo qualquer religião que lhes aprouvesse. E o protesto deles era contra qualquer obrigação de tolerar os católicos. A palavra “Protestante”, portanto, de acordo com o seu significado histórico e religioso, nasceu de uma denegação de liberdade de consciência; e os que assim protestaram contra a liberdade de culto para os católicos foram denominados Protestantes.

4. Quais as causas que em primeiro lugar levaram à Reforma Protestante?

A Reforma Protestante não foi realmente uma reforma. Foi antes uma revolução. Ela tirou reinos inteiros à Igreja Católica, e introduziu ideias inteiramente novas sobre as relações religiosas entre os cristãos e Cristo. Quanto às causas que levaram a essa revolução, é certo que não houve coisa alguma errada na religião católica em si mesma. Houve, porém, muita coisa errada em grande número de católicos, do contrário Lutero nunca teria alcançado o êxito que alcançou. Não é uma só e simples causa que pode explicar isto. Podemos dizer que aqueles que deixaram a Igreja Católica o fizeram por infidelidade à graça de Deus nas suas vidas pessoais. Mas que tantos devessem provar-se infiéis, isto reclama maior explicação; e essa maior explicação deve ser achada nas condições religiosas, culturais, políticas e sociais do tempo.

5. Qual era então o estado de coisas religioso e cultural?

Devemo-nos lembrar de que, durante o século anterior à Reforma, o Renascimento trouxera a revivescência dos clássicos pagãos gregos e latinos, e estes não só desviavam as mentes dos homens do estudo da filosofia católica, mas levavam à corrupção da vida entre as classes educadas. Ademais, muitos bispos e sacerdotes, grandemente desviados de Roma, haviam sido demasiado subservientes à autoridade secular, e haviam descurado reforçar a disciplina da Igreja, enfraquecendo-lhe assim a influência sobre o povo. O relaxamento no seio do clero produzira grande desedificação; e a demora na reforma dele preparara o caminho para uma reforma errônea, pelo rompimento com a Igreja. Sacerdotes descuidados haviam deixado o povo sem instrução e incrivelmente ignorante da sua religião; e, não conhecendo a sua própria fé, grande número de simples católicos não discerniam o verdadeiro mal contido no movimento separatista. Não conhecendo a verdade, eram manejados pelas ideias dos reformadores, que denunciavam Roma sem exigir qualquer padrão mais alto de virtude do que o que até ali prevalecera.

6. Então você admite que a queda da Igreja Católica se deveu á sua própria depravação?

A Igreja Católica não caiu. Muitos dos seus membros haviam caído dos seus padrões de virtude, e multidões faziam disto pretexto para abandonarem a fé pela heresia. Um dos grandes opositores de Martinho Lutero foi Tomás More, na Inglaterra. Tomás More estava tão cônscio do triste estado das coisas como Lutero, mas não cometeu o erro de censurar a Igreja por causa dos membros relapsos nela existentes. Nem seria correto imaginar que só havia relaxamento na Igreja imediatamente antes da Reforma. Havia Santos naqueles dias tanto como havia pecadores. Leia esse maravilhoso livrinho A Imitação de Cristo, por Tomás a Kempis. Esse tesouro espiritual foi escrito por um monge católico durante aqueles anos de suposta corrupção universal. E esse livro reflete os verdadeiros ideais da Igreja Católica.

7. Você diria que Lutero errou declarando necessária uma reforma?

Não nego que era necessária uma reforma. Havia muitos abusos a ser corrigido. Mas Lutero não introduziu um movimento de real reforma. Fez dos abusos reinantes pretexto para ao mesmo tempo deixar a Igreja, ao invés de ficar nela e procurar efetuar a conversão dos seus membros relapsos para melhores caminhos. Ademais, ele manteve muitos dos próprios abusos, apenas procurando justificá-los pela negação de que eles fossem errados, e ainda sancionou ulteriores renúncias às normas do verdadeiro Cristianismo.

8. Você disse que, além dos fatores religiosos e culturais, condições políticas contribuíram para o sucesso de Lutero.

E assim foi. O prestígio do Papado em negócios de Estado através da Europa diminuíra sensivelmente durante os dois séculos anteriores à Reforma, e a autoridade do Imperador também havia sido grandemente minada. No tocante ao prestígio do Papado, importa lembrar que, na maior parte do século quatorze, os Papas tinham sido forçados a viver fora de Roma, em Avinhão, na França, expondo-se à acusação, por outras nações, de estarem sob influência política da França. Quase imediatamente após o regresso deles a Roma, teve lugar aquilo que é conhecido como “Grande Cisma do Ocidente”, quando, além do Papa legal, houve dois antipapas, cada qual pretendendo possuir a autoridade suprema sobre a Igreja. No seu reconhecimento desses papas as nações se dividiram sobre linhas políticas, e isto enfraqueceu grandemente a influência do Papado na Europa. Depois que esse desastre foi sanado pela eleição do Papa Martinho V, em 1417, e pela supressão de todos os Papas rivais, surgiram dificuldades de dinheiro. O Papado estava empobrecido. Era preciso dinheiro para a construção da basílica de S. Pedro em Roma, e neste sentido foram feitos apelos a toda a cristandade, concedendo-se indulgências a todos os que contribuíssem para a causa. A acusação de traficância nessas indulgências veio a ser a razão imediata para a revolta de Lutero; mas, se ele alcançou tamanho êxito foi porque Roma, havia muito, perdera em grande extensão o amor e o respeito. Enquanto isso, a autoridade imperial era apenas uma sombra do que tinha sido. O feudalismo estava desmoronando na Europa. Vassalos governantes nas províncias estavam-se tornando cada vez mais rebeldes e independentes. Lutero teve apenas de soprar sobre chamas já ateadas; e fê-lo explorando a ambição e o espírito de independência reinantes entre os príncipes germânicos, excitando à revolta contra o Imperador. E lisonjeou-lhes a cupidez e o orgulho aconselhando-os a esbulharem a Igreja da sua propriedade nos domínios deles, e a tomarem sobre si o controle da doutrina e da moral dos seus súditos.

9. Como foi que o estado da sociedade contribuiu para o êxito de Lutero?

Pelo simples fato de haver o descontentamento permeado cada camada dela. A sociedade sofre quando grande número de pessoas estão descontentes com a sua sorte. Além disto, clero, príncipes e camponeses estavam igualmente insatisfeitos. Os bispos eram mundanos, desfrutando ricos benefícios, ao passo que sacerdotes ignorantes e acossados pela pobreza abundavam como um “proletariado clerical”. Os mosteiros, igualmente, ressentiam-se da interferência e das exações dos bispos; e, por sua vez, eram de frouxa observância, com consequentes dissensões internas. Por isto, muitos membros do clero, tanto diocesano como regular, estavam prontos para jogar fora as suas batinas e para seguir o ainda mais atenuado Evangelho de Lutero. Entre os pequenos príncipes alemães reinava o ciúme e a anarquia, e eles estavam mais do que prontos para as guerras de religião que em breve deviam seguir-se. Os camponeses, espezinhados e miseráveis, pensavam também poder ganhar muito com a revolução protestante, embora na realidade viessem a achar-se logrados e trucidados.

10. O poder do Romanismo não foi quebrado por Martinho Lutero, de imoral memória?

Martinho Lutero é, sem dúvida, uma figura saliente na história. Mas, conforme o expliquei, a situação toda constituía o momento histórico em que um homem podia desencadear à tempestade. Enquanto isso, a memória imortal de Lutero tornar-se-á cada vez menos grata à medida que os fatos a ele concernentes forem sendo mais conhecidos. Os que o idealizam só podem fazê-lo ignorando uma imensa soma de informação inconveniente.

11. Sem dúvida os historiadores católicos têm pintado Lutero com as cores mais negras.

Estou de pleno acordo em admitir que muitos escritores católicos deram uma informação deturpada sobre Lutero, tal qual como livros escritos por protestantes têm dado uma visão deturpada da posição católica – e em extensão muito maior. Mas, ainda assim, digo que um estudo imparcial da história só pode é desacreditar Lutero como reformador religioso.

12. Vocês nunca apagarão as lembranças do passado nas mentes protestantes.

Mas podemos corrigir essas lembranças. Podemos mostrar que os livros de texto que perpetuam falsas vistas da história não proporcionam um conhecimento genuíno do passado. Podemos mostrar que, muitas vezes, em histórias da Reforma Protestante, o sentimentalismo tem sobrepujado a razão desapaixonada.

13. História é história e o registro da verdade.

Você esquece que os historiadores nem sempre dizem a verdade. Os textos de história em língua inglesa na sua maior parte foram escritos por protestantes de convicção, ou pelo menos infectados pela tradição protestante, por mais imparciais que eles pensem ser. Ainda que inconscientemente, desvio e preconceito insinuam-se nos seus escritos, e a verdade plena não deve ser achada nas suas obras. Não raras vezes as coisas são repetidas como fatos que não são fatos. Onde quer que fatos indiscutíveis interessem, faz-se uma seleção, omitindo-se fatos inconvenientes, enquanto que os escolhidos são interpretados para quadrar com as teorias do escritor. A nossa queixa nunca é da história, é dos historiadores.

14. Não será que é o seu próprio preconceito católico que assim o faz falar?

Não. Escute as palavras de um protestante, o Revdo. Dr. Goudge, Régio Professor de Teologia da Universidade de Oxford. Num apelo em pró de um melhor entendimento entre protestantes e católicos, ele nos pede desfazermo-nos dos preconceitos do século dezesseis, quando ocorreu a Reforma. “Todo o espírito das controvérsias”, escreve ele, “era mau. Elas eram negras de ódio e de falsa representação, e conduziam grandemente a desaforos teológicos… Se basearmos as nossas afirmações em fontes do século dezesseis, baseá-las-emos em fontes envenenadas. Na melhor das hipóteses elas omitem metade da verdade, e, na pior, mentem” (The Church of England and Reunion, p. 28).

15. Você acha que é imparcial quando imputa motivos indignos aos reformadores protestantes?

Sim. O Revdo. Dr. Goudge escreve no livro há pouco citado, pp. 41-42: “Nenhum católico romano instruído nega agora a tremenda condição da cristandade ocidental no começo daquele século, ou o fracasso do movimento conciliar ou de outros movimentos reformadores para combatê-la com êxito. Nenhum protestante instruído nega agora que motivos políticos e pessoais influíram muito na Reforma Protestante (…). É dever dos membros mais bem informados de todas as comunhões corrigir os erros dos menos informados, especialmente quando esses erros os levam a julgar mal aqueles de quem estão separados”.

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16. Quanto tempo da sua vida Martinho Lutero levou como católico, e quanto como protestante?

Martinho Lutero levou trinta e sete anos como católico, e vinte e seis como protestante. Nasceu em Eisleben, na Alemanha, a 10 de novembro de 1483. Declarou que tinha tido uma infância infeliz, e que, num estado de depressão, impelido pela brutalidade da sua vida doméstica e escolar, entrou para um mosteiro Agostiniano. Ali esteve bastante feliz a princípio. Viveu vida fervorosa e estrita, e, finalmente, foi ordenado sacerdote em 1507. Mas tinha um temperamento neurótico, provavelmente por efeito de uma infância supra-reprimida, e gradualmente tornou-se vítima de escrúpulos e de melancolia. Alternava entre acessos de completo descuido dos seus deveres e de violenta penitência pela sua infidelidade. Ninguém podia considerá-lo um homem de juízo equilibrado. A crise na sua vida veio com a publicação da Bula Papal de Indulgência concedidas aos que contribuíssem para a construção da Basílica de S. Pedro em Roma. Ele fez disso pretexto para um ataque contra todo o sistema penitencial da Igreja e contra todo o sistema presidencial da Igreja e contra toda a autoridade eclesiástica. A 31 de outubro de 1517, pregou à porta da Igreja de Wittenberg as suas famosas 95 teses, desafiando o ensino da Igreja. Ele não era profundamente versado nesse sentido. No seu panfleto Hans Worst, publicado em 1541, escreveria ele: “Tão certo como Nosso Senhor Jesus Cristo me remiu, eu não sabia o que era indulgência”. Mas persistiu obstinadamente na sua rebelião contra a Igreja, e em 1520 foi excomungado pelo Papa, tendo então trinta e sete anos de idade. Na Dieta de Worms, em 1521, contam que ele disse: “Aqui fico, não posso fazer de outro modo. Assim me ajude Deus”. Porém investigações protestantes provaram não serem autênticas essas palavras, e sim mera lenda. Em 1525 ele se casou com Catarina de Bora, ex-freira. Morreu a 18 de fevereiro de 1546.

17. Lutero não visitou Roma em 1511 e não perdeu a fé na Igreja Católica por causa dos escândalos que ali viu?

Em 1511 ele visitou Roma a negócios monásticos, mas não perdeu a fé por causa de quaisquer abusos que ali tivesse visto. Voltou para a Alemanha tão forte na sua fé católica como o era antes dessa visita. Só anos mais tarde, depois de haver sido excomungado da Igreja, é que ele escreveu dizendo que achara Roma “uma cloaca de iniqüidade, os seus sacerdotes infiéis, os homens da corte papal com vidas vergonhosas”, e que a sua reverência para com Roma se convertera em nojo. Mas assim ele interpretava um estado de mente anterior, à luz de preconceitos posteriores. Na realidade, cartas escritas por Lutero após o seu regresso de Roma falam do Papa com o maior respeito.

18. Tendo perdido a fé na Igreja Católica, Lutero converteu-se ali mesmo ao verdadeiro Evangelho.

Contam a história de que ele subia de joelhos a “Scala Santa”, quando de súbito luziu-lhe na mente este pensamento: “O justo vive na fé”. Mas em parte alguma, em nenhum dos seus escritos, o próprio Lutero menciona isso. O incidente não é histórico, e sim uma lenda forjada por seu filho Paulo, que ali sacava sobre a sua própria imaginação.

19. Mas, seja lá como for que ela tenha ocorrido, você não pode negar a realidade da conversão de Lutero.

Não nego que lhe haja sobrevindo uma mudança quatro ou cinco anos depois da sua visita a Roma, e que, ao passo que ele foi católico até ser finalmente excomungado pela Igreja em 1520, de então por diante foi protestante. Mas nego que essa mudança tenha sido uma conversão sobrenatural devida à graça de Deus. Lutero fracassara na sua própria vida em viver conforme mente aos ideais de santidade que a Igreja Católica lhe apresentara. Para alcançar a paz de espírito nos seus próprios baixos ideais, ele persuadiu-se de que a Igreja estava errada exigindo quaisquer boas obras. Convenceu-se de que o homem é totalmente depravado, de que ele não tem livre arbítrio, e de que Deus não espera que o homem seja outra coisa senão depravado. Então inventou o consolador evangelho de que o homem é salvo pela fé somente, e não pelas obras. Crença, e não bom proceder, foi de então por diante o segredo da salvação ensinado por Martinho Lutero.

20. Lutero não foi um bravo em seguir as suas convicções a despeito da oposição da Igreja Católica?

Ele tinha uma coragem natural. Mas isso não era virtude mais do que o é a coragem frequentemente achada em malfeitores. Coragem meramente humana não é sinal de bom cristão.

21. Por que é que os católicos dizem que Lutero foi tão mau assim?

Os protestantes que idealizam Martinho Lutero apresentam a sua suposta santidade como argumento em favor da Reforma Protestante. Para fazer face a esse argumento os católicos não tem outra alternativa senão evidenciar que Lutero absolutamente não foi um santo homem. Os católicos arguem que quem proclama ter sido incumbido por Deus de revelar Cristo ao mundo degenerado deve exibir em si mesmo uma vida cristã. Mas Lutero assim não fez; e é inconcebível que um tipo de homem qual ele era fosse escolhido por Deus para reformar a Igreja de Cristo.

22. Aos protestantes sempre foi ensinado que Lutero era verdadeiramente um homem de Deus.

Há dois Luteros: o Lutero de ficção fascinadora, e o Lutero da história e do fato. O Lutero de ficção aparece no púlpito protestante, nas escolas dominicais e em biografias partidárias. Mas o Lutero real será achado nos seus escritos – e certamente me refiro às edições deles não expurgadas. Protestantes bem informados já não falam mais da “santidade” dele. Detêm-se sobre a sua qualidade de campeão do livre pensamento, e sobre o seu êxito em derrubar a tirania de Roma. Porque, enquanto que Lutero era indubitavelmente um homem religioso, era também um homem muito desequilibrado, que fracassou em regular as suas inclinações religiosas de acordo com as leis de Deus, e que condescendeu com outras inclinações em trilhas igualmente indesculpáveis. Lutero teve um caráter estranhamente complexo. H.A.L. Fisher fala da sua “vasta força animal, da sua alegria e agudeza, da sua rusticidade e chiste, da sua selvagem veia de romance e áspero escolasticismo, das suas ingênuas superstições aldeãs, e da sua mórbida autocrítica”. (A History of Europe, p. 543). Lutero era amável, generoso, terno e sentimental, mas era também orgulhoso, incrivelmente vaidoso e teimoso. O “eu” era supremo nele. Toda oposição ao “eu” de Lutero era uma afronta à “Liberdade Cristã”; a doutrina tinha de ser ajustada para quadrar com o “eu” desse homem introspectivo; e ele exigia para si mesmo uma vida cristã. Mas Lutero assim não fez; e é inconcebível que um tipo de homem qual ele era fosse escolhido por Deus para reformar a Igreja de Cristo.

23. Você diz que protestantes bem informados têm modificado a sua apreciação sobre Lutero como homem de Deus. Pode citar um deles?

O Deão W. R. Inge, de S. Paulo em Londres, é indubitavelmente uma sumidade. É, também, indubitavelmente a sua antipatia pela igreja Católica. Contudo, eis aqui a sua apreciação sobre Lutero, como dada no seu livro Protestantism, p. 28: “Lutero, portanto, foi um reformador que não era nem filósofo nem teólogo. Era reacionário de vários modos, e os Humanistas, que a princípio tinham esperanças nele, não tardaram a descobrir que muito pouca simpatia poderia haver entre si. Exaltando a fé e rebaixando as boas obras, e usando a “Fé”, com as suas associações intelectuais, ele deu mais importância a corrigir a crença do que nem mesmo os católicos o haviam feito. Ele não quis entender a tolerância aos Anabatistas e a outras sectários, e em princípio não fez objeção à perseguição. A sua atitude durante a Revolta dos Camponeses fica sendo uma mancha na sua carreira, embora se deva admitir que a sua posição era extraordinariamente difícil. Todo o futuro da obra de sua vida parecia depender da bem sucedida defesa da sua autoridade pelos príncipes. Finalmente, a despeito do caráter fortemente ético do seu ensino, houve o seu trato das questões sexuais uma grosseria que repercutiu desfavoravelmente sobre a moral do povo alemão”.

24. Sabe de algum bem em Lutero?

Sei, mas não o bastante para compensar vícios inteiramente deslocados num homem que é olhado como equilibrado e como santamente reformador. O “caráter fortemente ético” que o Deão Inge descobre nos escritos dele ocorre somente em certos lugares. Com bastante frequência Lutero ensina doutrinas as mais imorais, e põe-nas em prática na sua própria vida. S. Paulo diz que os que são de Cristo crucificam a sua carne com os seus vícios e concupiscências (Gál 5,24). Entretanto, que Lutero condescendia com seus vícios e concupiscências torna-se claro “pelos seus próprios escritos, onde ele dá vergonhosas descrições da sua própria indulgência para com tudo quanto é apaixonado. Os seus diários registram chocantes excessos de sensualidade, que não poderiam ser impressos em nenhum livro decente hoje em dia. Um verdadeiro apóstolo de Cristo não dá curso a expressões tais como: “Ser continente e casto não está em mim”; ou “Por que ando sempre empapado em vinho?” Auto-controle era coisa que não existia em Lutero. Ele soltava as rédeas às suas paixões mais baixas, dizendo calmamente que assim deve fazer o homem, e não será responsável por essa conduta.

25. Lutero escreveu os mais belos hinos, e parece estranho que um homem assim tão mau como você retrata pudesse ser tão religioso a ponto de os escrever.

Contudo, lado a lado com os seus belos hinos Lutero escreveu grosseiras e chocantes espurcidas como tais não divulgadas. Psicologicamente, ele era um caráter estranho, quase médico e monstro alternativamente. Nos momentos religiosos, a sua imaginação derramava-se em poesia e em hinos. Mas estes, e muitas outras belas passagens, que podem ser colhidas dos escritos de Lutero, eram meros resíduos da sua herança católica. Nos momentos sensuais, ele se rebolcava nas suas paixões. Quando vinha a melancolia, embriagava-se. Nos momentos de luta era inexorável em alto grau, e descascava os seus opositores com violentas torrentes de injúria. A grandeza de Lutero não foi nem uma verdadeira grandeza humana, nem uma verdadeira grandeza cristã. Foi simplesmente, como Martiain e Fisher indicaram, uma grandeza animal – uma grandeza de força, energia e veemência de caráter.

26. Desafio-o a produzir a evidência de haver Lutero alguma vez usado qualquer linguagem má.

É claro que você só conhece o Lutero lendário. Nenhum protestante decente poderia ter o livrinho Hans Worst, escrito por Lutero em 1541, sem extremo nojo. Zwinglio, seu companheiro de reforma protestante, queixava-se da vil linguagem desse sujo panfleto. Repito, nenhum protestante decente poderia ler a Conversa de mesa de Lutero sem pejo e indignação, D. P. Smith, o biógrafo protestante, no seu livro Luther, p. 321, escreve: “Fere o moderno leitor de nada menos do que de pasmo, quase de horror, o descobrir a conversa particular do grande moralista com os seus comensais e filhos, as suas aulas a estudantes, até mesmo os seus sermões, densamente permeados de palavras, expressões e histórias confinadas hoje em dia aos frequentadores dos mais baixos botequins”. Não há dúvida de que os ensinamentos e os conselhos práticos de Lutero, e o seu exemplo na conversação, estavam infinitamente abaixo das normas morais da Igreja Católica que ele descompõe, e abaixo mesmo das normas ora geralmente aceitas pelos próprios Protestantes.

27. Uma fonte não pode lançar, no mesmo jato, água salgada e água fresca.

Pode, se a fonte for enchida alternadamente de água salgada e de água fresca. E os pensamentos que acudiam à mente de Lutero eram alternadamente bons e maus.Quase todos os biógrafos de Lutero admitem que a linguagem deste era invariavelmente grosseira e vulgar, imprudente e impetuosa. Porém as descrições que eles fazem carecem de realidade, ou pelo fato de não terem eles querido mostrar o verdadeiro caráter de Lutero, ou por não terem querido ofender o senso de decência dos seus leitores. Sem embargo, Lutero era capaz de expressões baixas, soezes e vergonhosas, capazes de espantar até mesmo um pagão.

28. Pois bem: então ou são os católicos ou são os protestantes que estão certos na sua apreciação de Lutero. Porém quais?

Já lhe dei várias apreciações protestantes substancialmente concordes com a apreciação católica. Sobre o único ponto que poderia ficar em discussão, posso apenas dizer que qualquer protestante que diz que a revolta de Lutero contra a Igreja Católica foi inspirada por Deus está, sem dúvida alguma, enganado.


29. Como justifica essa afirmação?

Que a revolta de Lutero contra a Igreja Católica não foi inspirada por Deus, isto deveria ser evidente a quem quer que crê em Cristo e tem algum conhecimento dos Evangelhos. O próprio Cristo disse: “Edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Quem quer que diz que a Igreja, tal como Cristo a estabeleceu, falhou tanto posteriormente que os homens tiveram de deixá-la e de iniciar novas Igrejas, quem tal diz contradiz Cristo. E, no entanto, foi o que Lutero fez. Dizendo que as forças do mal haviam prevalecido contra a Igreja Católica, ele deixou esta para fundar uma nova Igreja sua. Isto significava que Cristo não tinha podido cumprir a sua promessa de proteger a sua Igreja contra semelhante corrupção radical. Que no tempo de Lutero houvesse abusos entre católicos, quer clérigos quer leigos, ninguém poderia negá-lo. O próprio Cristo predisse esses abusos quando disse que a sua Igreja seria como uma rede que apanha bom e mau peixe. Porém mau peixe não significa má rede. Onde Lutero cometeu o engano foi em condenar a rede tanto como o mau peixe, e em se afastar para fazer uma rede sua. Se ele realmente queria uma reforma, deveria ter ficado na rede garantida por Cristo, e ter despendido as suas energias em converter o mau peixe em bom peixe. Verificando isto, os bons protestantes hoje em dia deveriam voltar à rede que Lutero abandonou – a Igreja Católica.

30. Se Lutero alguma vez escreveu as coisas ignominiosas que você lhe atribui, está fora de dúvida que, anteriormente. Deus disse a ele: “O justo vive na fé, e não da penitência”.

Deus nunca disse tal coisa a Lutero. Lutero atribuiu a Deus os frutos da sua própria imaginação. Tomemos, porém, o ponto que você apresenta. Lutero começou a sua carreira, como pretenso reformador, de 1517 em diante. O seu imundo livro Hans Wordst foi escrito em 1541. A sua Conversa de mesa é cheia de expressões e sentimentos indecorosos e lascivos proferidos depois que ele se erigira em reformador. Bullinger, o reformador protestante suíço, escreveu a respeito de Lutero: “Ai! É claro como a luz do dia e inegável que ninguém jamais escreveu mais vulgar, mais grosseira, mais indecorosamente, em assuntos de fé, e de modéstia cristã, e em todos os assuntos sérios, do que Lutero. Há escritos de Lutero tão sujos, tão imundos, tão vulgares e grosseiros, que não seriam desculpados num pastor de porcos quais do que num pastor de almas”. Pregando em Wittenberg, depois de deixar a Igreja Católica, Lutero disse: “Se Moisés tentar intimidar-vos com os seus estúpidos Dez Mandamentos, dizei-lhe imediatamente: Suma-se daqui para os judeus!” Quantos protestantes apoiariam palavras como estas?

31. Mesmo se Martinho Lutero não pode ser defendido, por que então o seu mau caráter haveria de ser um argumento contra a Igreja Protestante, e no entanto, maus papas não seriam argumento contra a Igreja Católica?

Porque os maus papas não pretenderam ser fundadores de novas religiões, como o fez Lutero. O único fundador da Igreja Católica, ficou, e esse foi indubitavelmente santo, pois foi o próprio Jesus Cristo. Além disto, nenhum mau papa pretendeu jamais que os seus pecados estivessem de acordo com os ensinamentos de Cristo e da Igreja Católica; nem papa algum ensinou oficialmente que os membros da Igreja eram livres de proceder de tal modo. Mas Lutero corrompeu as próprias doutrinas de Cristo, e deu aos outros permissão para pecar. Finalmente, os Papas que não viveram boas vidas privadas possuíram autoridade apostólica para a sua legislação oficial em nome da Igreja – legislação que em si mesma foi toda certa. Mas Lutero não tinha autoridade apostólica para as suas inovações heréticas e cismáticas.

32. Então você nega que Lutero foi um homem enviado por Deus, ou que absolutamente não teve qualquer missão divina.

Nego. Ele persuadiu-se de que tinha uma missão divina. Mas isso não era coisa difícil para um homem do seu temperamento. E não há mais fundamentos para acreditar na missão divina de Martinho Lutero do que para crer na missão divina de Mrs. Eddy para propagar a “Ciência Cristã”, ou do Juiz Rutherford para fundar as “Testemunhas de Jeová”. Lutero esteve tão iludido na sua pretensão de uma missão divina como o esteve em muitos outros assuntos.

33. Você nega a sinceridade dele?

Não inteiramente. Ele não errou somente no seu próprio interesse. Tinha convicções sinceras, embora muito desarrazoadas. Mas era muito inescrupuloso quanto aos meios que empregava para atingir os seus fins. Foi um estranho misto de misticismo e realismo. E, se em alguns ele atendia a um genuíno desejo de reforma, em outros atendia ao seu apetite de escândalos, ao seu amor da novidade, e às suas paixões racionalistas. Os seus caminhos estiveram muito longe de se parecer com os de Cristo.

34. Ninguém pode dizer que Lutero não era deveras zeloso.

Infelizmente, no caso dele, era um zelo sem conhecimento e sem caridade. Defendendo as suas teses contra as autoridades católicas, ele adotou uma atitude de orgulho e arrogância, abandonando a razão pela invectiva. Ele destilava escárnio desprezador nas suas críticas, e logo manifestou um ódio cego a Roma e ao Papa. E nem depois procedeu diferentemente para com outros mestres protestantes que divergiam dele. Os seus sermões eram obstinados e dogmáticos. Ele não suportava contradição. Não tolerava rival. Arrogava-se a própria infalibilidade que ele negava ao Papa.

35. Ele desejava apenas corrigir abusos e reformar homens.

Ele nunca teria sido condenado como herege se houvesse apenas desejado corrigir abusos e reformar homens. Porém foi mais longe. Disse que a própria doutrina católica se corrompera, e que ELE tornara a descobrir o Evangelho. Mas os novos princípios que ele ensinava eram muito lisongeiros para a natureza humana. Apelavam fortemente para o espírito de independência, e abriam o caminho para um relaxamento ainda maior. Os homens viram nele uma emancipação da autoridade da Igreja e de toda restrição moral.

36. Você oferece essa explicação como o segredo da influência de Lutero?

Em parte. Outro e grande fator foi a situação política no seu tempo. Lutero não era um profundo pensador, mas tinha intuição para ver a inquietação religiosa que reinava na Alemanha, e as ambições políticas dos príncipes alemães. De fato, a Alemanha era um vulcão político-religioso, e Lutero não teve senão que dar expressão apaixonadamente contagiosa às recriminações contra Roma e às aspirações à independência política já muito difundidas. Por isso ele se deu o trabalho de suscitar em furacão de ódio religioso e racial, de jogar com o sentimento político e nacional, e inflamar toda a Alemanha tanto contra o Imperador como contra o Papa. Lutero, o reformador, tornou-se Lutero o revolucionário e o herói que sustentou a oposição nacional a Roma. Não houve aí sinais quaisquer de uma missão puramente religiosa e espiritual recebida de Deus!

Parece estranho que outros não tenham chegado a essa sua interpretação da história

Esses fatos parecem estranhos aos que só conhecem o Lutero da lenda, e que nunca estudaram o assunto por si mesmos. Porém sumidades protestantes estão inteiramente prontas a concordar com as explicações que eu dei. No seu livro A History of Europe, p. 500, H. A. L. Fisher escreve que Lutero “foi um gênio religioso a se experimentar a si mesmo, o qual, na sua busca de salvação pessoal, gradativamente foi levado a assumir uma atitude que o fez campeão da nação germânica contra as pretensões da Igreja de Roma”. Quando os Judeus quiseram que Cristo se fizesse o campeão da sua nação, ele se recusou. Não era por tais meios que o Reino de Deus devia ser estabelecido.

Martinho Lutero pelo menos não forçou a Igreja Católica a reformar-se?

As multidões arrebatadas à Igreja Católica pela revolta luterana certamente convenceram os dirigentes desta da urgente necessidade de uma reforma real; e essa reforma real foi efetuada pelo Concílio de Trento. A severa legislação e os decretos disciplinares desse Concílio erradicaram os pronunciados abusos que deram ocasião à separação protestante da Igreja; e desde então não mais houve movimento tal. Até onde a Igreja Católica entra em questão, o protestantismo gastou a sua força nos primeiros anos da revolta; e desde então já não houve qualquer perigo real em larga escala para a fé dos católicos. A notável tendência hoje em dia é para os protestantes se tornarem católicos, e não para os católicos se fazerem protestantes.

Então, certamente, você deve algum agradecimento a Martinho Lutero

Lutero, nós não podemos respeitá-lo. Ele não tinha o direito de deixar a Igreja Católica e de começar uma Igreja própria sob o pretexto de reforma. Ele deveria ter ficado na verdadeira Igreja e trabalhado para reformar os católicos relapsos dentro dela. Você leva um prato que precisa de limpeza; não o quebra. Na ordem dos fatos, em 1521 o mundano Papa Leão X morreu, e foi sucedido pelo Papa alemão Adriano VI. Adriano era justamente um Papa como Lutero pretendia. Era austero e santo, e imediatamente se pôs em obra para reformar os membros da Igreja, começando pelos próprios Cardeais, e lutando contra o relaxamento italiano. O bravo velho Papa teria sido vastamente ajudado pelo apoio germânico e pela cessação da oposição no Norte. Mas Lutero não fez esforço nenhum para ajudar um verdadeiro reformador posto na verdadeira Sé de onde a reforma deveria partir. Em vez de ajudar um compatriota que era justamente um chefe da Igreja tal como ele declarara necessário, ele continuou a vomitar insultos contra o Papa como se fosse o demônio. Adriano VI morreu de pesar, e a contra-Reforma real veio com o Concílio de Trento, perto de vinte anos depois. Então o caos grandemente difundido forçou a ação; mas a reforma foi devida ao poder inato da Igreja viva, de renovar a sua própria vitalidade.

Ao menos Deus fez uso de Lutero para provocar na Igreja uma reação salutar. Do seu próprio ponto de vista você deveria admitir a missão divina dele para fazer isso

Indiretamente, aos planos da Providência de Deus, a revolta de Lutero forçou as autoridades da Igreja Católica e empreenderam a obra de reforma. Porém ele não é mais digno de respeito por causa disso do que o foi Atila, no século V, invadindo a Itália, devastando o país e destruindo as Igrejas até às portas de Roma. Os católicos do século V consideraram a invasão de Átila como um castigo dos seus pecados e um aviso para a penitência; e falavam de Átila como do “Flagelo de Deus”. Nenhum cristão admitiria que Átila tivesse recebido missão divina para matar, pilhar e profanar, mesmo havendo Deus permitido o desastre e feito uso deste tirando o bem do mal. Do mesmo modo, Deus permitiu a defecção de Martinho Lutero do seio da Igreja e fez uso da sua revolta, para induzir os dirigentes católicos a um senso de responsabilidade. Mas a verdadeira reforma foi efetuada, não por Lutero, e sim por outros; e foi efetuada não somente sem Lutero, mas contra Lutero.

Que é que você consideraria como doutrinas distintas de Lutero, constituindo uma separação para com o verdadeiro Cristianismo?

As mais importantes são as seguintes. Ele declarou que a Igreja Católica incidira em erro doutrinal. Negou que a Igreja houvesse jamais significado ser uma instituição visível. Rejeitou a existência de todo sacerdócio especial na Igreja. Insistiu em que a Bíblia deve ser a única regra de fé. Além disto, consoante Lutero, cada homem tem o direito de interpretar a Bíblia por si mesmo. A justificação é alcançada pela fé sem obras. A alma justificada é concedida uma segurança pessoal de salvação. A fé cristã não necessita, nem pode ter, qualquer fundamento racional.

Você censura Lutero por ter deixado a Igreja Católica. Mas, em vista dos abusos que você admitiu, não era necessária uma reforma?

Sem dúvida. Mas não havia necessidade disso a que se chama a “Reforma Protestante”. Alguns abusos entre os membros da Igreja sempre clamarão urgentemente por uma reforma. Mas o Protestantismo não foi um movimento de reforma real. Ele fez dos abusos reinantes uma desculpa para abandonar ao mesmo tempo a Igreja, em vez de ficar com ela, e nela procurar efetuar a conversão dos seus membros relapsos para melhores caminhos. Ademais, o Protestantismo conservou muitos dos próprios abusos, e apenas procurou justificá-los negando estarem eles errados. Coisa que a Igreja Católica nunca fará. Pode ela admitir, com tristeza, que seus filhos às vezes calam em pecado; mas nunca dirá que aquilo que é pecado não é pecado, como o fizeram muitos reformadores.

Então você nega que a Igreja Católica, como tal, provou ser um guia inafiançável?

Nego. Cristo disse: “Edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16,18). Quem quer que diga que a Igreja falhou em qualquer período da sua carreira assevera que as portas do inferno prevaleceram contra ela! Cristo ou era Deus ou não era. Se não era, foi um impostor e um blasfemador, e deveríamos renunciar inteiramente a crer nele. Mas, se era Deus, então podia fazer o que disse que faria – preservar a sua Igreja, através das idades, contra todas as forças do mal. Não é a fé em Cristo, mas com a falta de fé em Cristo, que tem levado os homens a abandonarem a Igreja que ele estabeleceu.

Lutero declarou que a Igreja visível fracassou, mas não a Igreja invisível; e que a verdadeira Igreja é, necessariamente, invisível

Ele achou necessário inventar essa teoria para justificar a sua rebelião contra a Igreja Católica visível. Mas não foi coerente. Quando desejou suprimir os Anabatistas, recorreu à autoridade de uma Igreja visível, conhecida pelo batismo, pela celebração da Ceia do Senhor e pela pregação do próprio evangelho dele. Mas no fim achou que, a fim de reforçar as suas idéias, tinha de apelar para o Estado. Repudiada a autoridade papal, só restava a autoridade civil.

Com Lutero, nós sustentamos que a Igreja está nas almas dos homens

Se a Igreja é uma qualidade invisível confinada nas almas dos homens, então nenhum ser humano poderia dizer onde deve ser achada a verdadeira Igreja, e ninguém poderia ouvir a voz dela ou obedecer-lhe aos preceitos. Não. Nosso Senhor estabeleceu uma sociedade visível neste mundo, embora não sendo deste mundo. E comparou-a a uma cidade situada sobre uma colina, a qual não pode ficar escondida.Uma das Igrejas visíveis e organizadas neste mundo hoje em dia é a dele. E só a Igreja Católica pode mostrar os característicos que ele declarou que a sua Igreja possuiria.

A Igreja é formada não dos que pertencem a uma organização visível, mas sim dos que nasceram do Espírito Santo

Uma Igreja assim não poderia ser julgada pelos homens. Ninguém poderia, portanto, dizer quem é que pertencia à verdadeira Igreja e quem não. Cristo estabeleceu uma Igreja visível, e designou Apóstolos visíveis para governarem essa Igreja. Nos Atos dos Apóstolos 20, 28, lemos: “Tomai cuidado convosco e com o rebanho inteiro, onde o Espírito Santo vos colocou como bispos para governardes a Igreja de Deus”. Como poderiam os bispos governar a Igreja se não soubessem quem é que pertencia a ela?

Cristo disse: “O reino de Deus está dentro de vós”

O reino de Deis conforme estabelecido por Cristo é a um tempo uma Igreja visível neste mundo e um reino invisível de graça dentro da alma. A adesão externa ao reino visível exige também que Cristo reine na alma pela graça. Mas essa graça interior não dispensa o homem de aceitar a vontade de Cristo desde que ele se dê conta desta, nem da obrigação de se juntar à Igreja visível por ele estabelecida neste mundo. Cristo disse:”Se alguém não escuta a Igreja, seja como o pagão”. Obviamente ele se referia à autoridade de uma Igreja visível. Ele também comparou sua Igreja a uma rede que apanha bons e maus peixes. Isto não pode referir-se somente a um reino de graça espiritual e invisível, porquanto maus peixes não estão em estado de graça.

A ideia de um sacerdócio visível, distinto do laicato, não tem ligação com a doutrina de uma Igreja visível?

Tem. E é igualmente ensino do Novo Testamento que deve haver um sacerdócio visível na Igreja.

Mas Lutero provou, com o Novo Testamento, que não há sacerdócio distinto do laicato. Ele mostrou o claro ensino do Novo Testamento de que todos os cristãos são um santo sacerdócio.

Mas isso é apenas parte do ensino do Novo Testamento, e não todo ele. O batismo implica uma certa consagração sacerdotal a Deus, e a obrigação de oferecer o sacrifício de louvor por uma sincera vida de oração e de boas obras. Mas, dentre os batizados, certos homens devem ser escolhidos e especialmente ordenados para oferecer o continuado Sacrifício do Corpo e Sangue de Cristo, e para perdoar pecados. Neste último sentido, nem todos os cristãos são sacerdotes.

Onde é que, no Novo Testamento, há menção desse sacerdócio especial?

Que é um sacerdote? É alguém escolhido de entre os homens, dedicado a Deus por sagração, e delegado para oferecer sacrifício a Deus, para ensinar e para santificar os homens. Ora, Cristo certamente fez escolha especial de certos homens. S. Lucas 6, 13 diz: “Chamou os seus discípulos e escolheu doze deles”. Consagrou-os. Deu-lhes a Sua própria missão, dizendo: “Como meu Pai me enviou, assim eu vos envio”. Comunicou-lhe o seu próprio poder. “Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,21-22). Havendo-os escolhido e consagrado, mandou-lhes ensinarem e santificarem os homens. Em S. Mateus 28, 19 disse-lhe: “Ide, ensinai todas as nações”. Quanto a santificá-los: “Batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28, 19). E ainda: “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20,23), S. Tiago (5-14) escreve: “Alguém está doente? Mande chamar os sacerdotes da Igreja, e orem estes sobre ele, urgindo-o com óleo, e, se ele houver cometido pecados, estes lhe serão perdoados”. Finalmente, Cristo ordenou-lhes oferecerem sacrifício a Deus. Na última Ceia ele disse: “Isto é meu corpo que é entregue por vós. Fazei isto em memória de mim; e, todas as vezes que o fizerdes, anunciareis a morte do Senhor”. Todas as vezes que um sacerdote legalmente ordenado celebra a Missa, oferece esse sacrifício. A mesma Vítima é oferecida, Jesus Cristo, e pelo sacerdócio de Jesus Cristo no celebrante. Só por um sacerdócio de Jesus Cristo no celebrante. Só por um sacerdócio sucessivo e perpétuo, por escolha, consagração e incumbência divina, é que isso pode ser feito.

Se tudo é tão claro como você diz, por que então tê-lo-ia Lutero negado?

Lutero ignorou a evidência do Novo Testamento, em favor das suas novas teorias, que o absorviam com exclusão de tudo o mais. A chave para esta posição deve ser achada na sua história pessoal. Obsesso pela violência das suas próprias paixões, e pela consciência dos seus muitos pecados, Lutero foi levado a um estado de abatimento, melancolia e desespero. Ansiando por uma certeza de que não seria condenado, argumentou que o pecado original viciara totalmente a natureza e a vontade do homem, e que era impossível, para este, viver vida boa. Era inútil testar. Portanto, o homem não pode fazer nada para promover a sua salvação. Mas aquilo que o homem não pode fazer, pode-o Deus. Nós devemos simplesmente crer no poder de Cristo para efetuar a nossa redenção, imputando a nós a sua bondade. Embora não possamos senão continuar pecando, podemos ao menos pôr a nossa completa confiança em Cristo, e, assim fazendo, sermos salvos. Nesta doutrina da justificação pela fé sozinha está contida em germe e subsequente negação da Igreja visível, do sacerdócio, do sacramentalismo, do livre arbítrio, e finalmente, a asserção da própria predestinação.

Se a teoria de Lutero era nova, era porque o povo não conhecia a Bíblia. Coube a Lutero descobrir a Bíblia e dá-la ao mundo.

Depois de deixar a Igreja, Lutero disse que no mosteiro descobrira uma Bíblia, “um livro que ele nunca tinha visto antes na sua vida”, e que “só ele no mosteiro” lera. Mas isto é contrário a fatos demonstráveis. A Regra da Ordem Agostiniana, a que Lutero pertencera, incluía o mandamento de que todos os membros deviam “ler assiduamente as Escrituras, ouvi-las devotamente, e aprendê-las fervorosamente”. Os estudos bíblicos floresciam naquela época, e comentários bíblicos existiam em profusão, Lutero não disse aí a verdade, e o mito do seu descobrimento de uma Bíblia desconhecida foi abandonado por todas as sumidades protestantes de confiança.

Ele foi o primeiro a traduzir a Bíblia para o alemão, de modo que o vulgo pudesse tê-la por si mesmo

Havia vinte e sete edições da Bíblia em alemão antes de Lutero publicar a sua tradução. Essa tradução foi feita em Walburg, mas, ao passo que o seu valor literário era alto, ela foi estropeada por mutilações e más traduções. A Lutero pouco se lhe dava de alterar a verdadeira Palavra de Deus, no interesse das suas próprias doutrinas. Ele rejeitou a Epístola de S. Tiago como uma “epístola de palha” porque ela não quadrava com a sua negação da necessidade das boas obras. Na epístola aos Romanos, 3, 28, S. Paulo escrevera: “Julgamos que o homem é justificado pela fé”. Na sua tradução Lutero aditou a palavra “apenas”, para fazer a sentença ser lida como: “Nós somos justificados pela fé apenas”. Reptado, sobre essa perversão do texto, por Emser, Lutero escreveu: “Se o seu papista o incomodar por causa da palavra (apenas), diga-lhe imediatamente: Dr. Martinho Lutero quer que assim seja. Quem não quiser ter a minha tradução, mande-a às favas; o diabo agradece a quem a censura sem a minha vontade e conhecimento. Dr. Martinho Lutero assim o quer, e ele é um doutor acima de todos os doutores no Papado” (Amic. Disc. 1, 127). Lutero não merecia confiança como tradutor da Bíblia.

Lutero ao menos defendeu o direito do juízo privado.

À conta disso ele repudiou a autoridade da Igreja Católica somente para achar que, sob a mesma alegação, outros repudiassem a dele. Assim ele esfacelou a unidade do Cristianismo na Europa, o qual se dividiu em seitas litigantes que Lutero denunciou de modo mais intolerante do que a Igreja Católica jamais o havia tratado, a ele. E a sua doutrina conduziu às mais tremendas desordens morais e políticas. Um resultado direito dos seus ensinamentos foram a Revolta dos Camponeses e a horrenda sorte dos Anabatistas de Münster.

De Lutero nós aprendemos a ler a Bíblia por nós mesmos e a aceitar como verdade o que descobrimos nas páginas dela.

Esse é um princípio errôneo. Muitos deixam de entender o verdadeiro sentido da Bíblia, e muitos mais lêem nela positivamente sentidos errados. Por isto S. Pedro diz que na Escritura há muita coisa difícil de entender, a qual o ignorante e versátil deturpa para sua própria perdição (2 Pedro, 3, 16). Os próprios frutos dessa interpretação privada deveriam ser prova suficiente de que Deus nunca poderia ter pretendido tal método. Porquanto os homens fizeram a Bíblia apoiar as doutrinas mais opostas, e estabeleceram centenas de seitas distintas e irreconciliáveis, cada qual pretendendo representar a verdadeira religião de Cristo. Deus nunca poderia ter intentado um princípio que levasse a semelhante caos.

Quando lemos a Escritura, devemos ser guiados somente pelo Espírito Santo.

Por que argumento você decide que é realmente o Espírito Santo que o guia? Outros, justamente tão sinceros como você, chegam a outras conclusões. Por que então aceitar a conclusão sua de preferência às deles? Toda sorte de religiões estranhas foram dadas ao mundo por homens que declararam com a maior confiança que o Espírito Santo era responsável pelas suas ideias. S. João deu a prova da verdade quando escreveu: “Aquele que não nos ouve não é de Deus. Por aí conhecemos o Espírito de Verdade e o espírito de erro” (1 Jo 4,6). S. João apela para o ensino dos Apóstolos como constituindo a Igreja docente – dessa Igreja Católica da qual Cristo disse: “Se alguém não ouve a Igreja, seja como o pagão!” (Mt 18, 17). A autoridade da Igreja docente é a única prova sã. Comentando o estado de coisas fora da Igreja Católica, Rosalind Murray escreve no seu livro The Life of Fath, p. 46: “Quando comparamos os rigorosos regulamentos contra médicos práticos, não qualificados, com a liberdade concedida a todos os práticos religiosos não qualificados, é impressionante o tratamento diferencial. Os corpos da comunidade são salvaguardados, com cuidadosa e incansável vigilância, das aventuras da não-ortodoxia, mas as suas mentes e as suas almas são abandonadas em compunção aos caprichos do charlatão não qualificado”. Mas esta é a consequência lógica do ensino de Lutero.

Mas será que o leitor comum não tem nenhuma oportunidade de chegar ao sentido exato da Escritura?

Em muitas passagens da Escritura ele certamente poderia fazê-lo. Mas em muitas outras absolutamente não teria essa oportunidade. Não há, entretanto, dúvida alguma de que a Bíblia é um dos livros mais difíceis de entender. Precisa-se de um vasto conhecimento de línguas antigas, de história e de costumes; e deve-se estar inteiramente familiarizado com as expressões hebraicas e gregas alegóricas, metafóricas e típicas, inteiramente à parte da intuição espiritual requerida para penetrar os mistérios mais sublimes. Quantos indivíduos estão assim qualificados?

O Evangelho de Cristo é a própria simplicidade.

Em certo sentido, é. Ele nos diz claramente que Cristo estabeleceu uma Igreja definida à qual deu a incumbência de ensinar todas as nações. Ele é muito simples sob este ponto de vista, pois os homens tem somente que aceitar a Igreja Católica e ser por essa Igreja ensinados. Mas o Evangelho não é a própria simplicidade no sentido em que você o pretende.

Lutero ensinou que nós temos somente que crer em Cristo, e seremos salvos.

Não é de admirar que ele conseguisse adeptos, com doutrina tão cômoda. Não vivendo à altura da sua religião, os homens ambicionavam um meio assim tão simples de sair fora dela. Mas semelhante doutrina é oposta ao ensino de Cristo. Ele disse: “Se queres entrar na vida, observa os mandamentos”.

Lutero acreditava que é feliz aquele cuja consciência aprova o que ele faz.

Isso estaria muito certo se significasse: “Feliz aquele cuja conduta nunca vai de encontro àquilo que uma boa consciência aprova”. Mas Lutero queria dizer: “Feliz aquele cuja consciência foi reduzida ao silêncio, seja qual for o mal que ele deseje fazer”.

Lutero não pregou a lei?

Pregou, mas não que ela deva ser observada. Ele ensinou que ela não podia ser observada, e que a finalidade dela é somente convencer os homens de como são depravados e pecadores. “A Lei”, escreveu ele, “indica o que o homem tem de fazer, enquanto que o Evangelho revela os dons que Deus está desejoso de conferir ao homem. A primeira nós não podemos observar; o último nós recebemos e aprendemos pela fé” (Tischreden I, e XII, 7). Na Conversa de mesa, p. 137, lemos: “Quem diz que o Evangelho exige obras para a salvação, digo redondamente, é um mentiroso”. Outra vez: “Só a fé é necessária para a justificação. Todas as outras coisas são completamente optativas, já não sendo mandadas ou proibidas” (Comentário sobre Gál. II). Em O Cativeiro Babilônico, c. 3, Lutero escreveu: “O cristão ou homem batizado não pode, ainda quando o quisesse, perder a sua alma por quaisquer pecados, grandes que sejam, a menos que recuse crer; porquanto pecados nenhum, sejam quais forem, podem condená-lo, mas somente a incredulidade”. Logicamente, de acordo com estes falsos princípios, de Warburgo ele escreveu a Melanchthon, a 1ª de outubro de 1521: “Seja pecador, e peque fortemente, mas creia mais fortemente ainda… Devemos pecar, já que somos o que somos… O pecado não nos separará d’Ele, ainda quando cometêssemos fornicação ou morticínio, mil e mil vezes ao dia” (Briefwechsel, Vol. III, p. 208).

Como católico, você há de dizer estas coisas de Lutero.

Citei as próprias palavras de Lutero. Mas escute estas outras de um escritor protestante. No seu livro The Re-Creation of Man, p. 24,T. M. Parker escreve: “Lutero recusou admitir ser possível ao homem decaído santificar-se pela graça. O mais que Deus poderia fazer por ele seria, por assim dizer, reputá-lo reto por ficção, encobrir-lhe a corrupção com a veste da justiça de Cristo, ficando o homem real sendo, todo o tempo, sob o disfarce, aquilo que era antes. Se a visão liberal do homem desonra a Deus sugerindo que o homem pode passar sem Ele, a visão luterana não o faz menos, ensinando que a imagem divina está inteiramente desfigurada no homem pelo pecado, e que excede o poder de Deus o refazer a sua criatura. Deus fracassou nos seus tratos com o homem, e o mais que ele pode fazer é encobrir-lhe a falta por uma justiça imputada, tal como o artista inábil esconde o seu retrato rejeitado”.

Lutero negou toda necessidade da nossa tentativa para oferecer satisfação pelos nossos pecados, e foi por isto que ele atacou a venda das indulgências.

Lutero atacou muito mais do que a necessidade de oferecer satisfação pelos nossos pecados; mas você está certo em dizer que o ataque ás indulgências foi uma decorrência lógica da teoria dele de que nós somos justificados pela fé sozinha. Contudo, esta teoria é falsa.

Você nega que as indulgências deram a Lutero razão suficiente para a sua revolta?

Nego. Ele fez delas uma das desculpas para a sua revolta, porém elas não eram razão suficiente.

Mas então as indulgências não devam aos católicos permissão para pecar?

Não. O ensino da Igreja Católica sempre foi que o pecado é essencialmente um mal. A todo custo somos obrigados a evitar o pecado. Jamais qualquer permissão pode ser dada para fazer o que é pecaminoso. Se o houver, foi o próprio Lutero quem concedeu indulgência total para cometer o pecado. A doutrina da justificação só pela fé, negando a necessidade das boas obras, logicamente foi uma indulgência para se fazer como se quiser.

Com que fundamentos a Igreja Católica reclama estar no caso de conceder indulgências?

Com os fundamentos de que existe uma mútua comunicação espiritual entre Cristo e o cristão, como também entre todos os que são membros de Cristo. Isto é simplesmente uma aplicação da doutrina da Comunhão dos Santos, na qual professam crer todos os que recitam o Credo dos Apóstolos. E que a Igreja tem o poder de aplicar a seus filhos na terra o valor satisfatório dos sofrimentos de Nosso Senhor e os dos Santos e dos Mártires, isto é evidente pelo fato de lhe haver Cristo dado o poder tanto de ligar como de desligar em seu nome. Ele disse à Igreja não somente: “Tudo aquilo que ligardes na terra será ligado no céu”, mas também: “Tudo aquilo que desligardes na terra será desligado também no céu” (Mt 18, 18). Por uma indulgência a Igreja remite para nós uma certa soma da expiação que devemos oferecer pelos nossos pecados ou nesta vida ou na outra.

O Papa Leão X não vendeu indulgências na Alemanha para arranjar dinheiro para a Basílica de S. Pedro?

Não. Concedeu indulgências aos que dessem esmolas para a construção de São Pedro. Mas uma bênção espiritual concedida aos que dão esmolas para uma boa obra não deve ser classificada como venda de bênçãos espirituais. Cristo teve uma bênção especial para a viúva que deu o sue óbolo ao Templo. Você não o acusaria de estar vendendo essa bênção por um óbolo!

Todos os historiadores falam de abusos na Alemanha, em ligação com o tráfico nas indulgências.

Sem dúvida houve abusos. Algumas das pessoas que eram delegadas para coletar esmolas para a Basílica de S. Pedro estavam mais preocupadas com os seus proventos do que com considerações espirituais, e adotavam meios inescusáveis para obter esses proventos. Na sua pregação, iam muito além do ensino da Igreja. Mas não tinham autoridade para proceder dessa forma. Mais tarde o Concílio de Trento condenou todos esses abusos, proibiu-os absolutamente, e exigiu que os bispos exercessem estrita vigilância sobre todos os que tivessem a seu cargo causas piedosas e obras de caridade para cujo amparo houvessem que ganhar indulgências.

Lutero não podia suportar todo o esforço ansioso para prover à sua própria salvação.

S. Paulo não hesitou em escrever aos Filipenses: “Com temor e tremor operai a vossa salvação” (2,12).

Quando a visão dos seus pecados o tentava de duvidar da sua salvação, ele exclamava: “Escrevam por cima de todos os meus pecados: O Sangue de Cristo me purifica”.

O fato de exclamar isso não o torna verdadeiro. Quando Lutero era exprobrado pela sua consciência, como tinha toda a razão para ser, censurava o demônio pelos seus pensamentos inquietos, e assim se justificava de os ignorar. E, mesmo quando falava da misericórdia de Deus, fazia dessa misericórdia uma escusa para continuar na sua má conduta e para ofender ainda mais a Deus. Para achar a paz da alma, Lutero preferiu ajustar sua consciência à sua conduta, a ajustar sua conduta à sua consciência; e, em vez de renunciar aos seus pecados e fazer penitência deles, prosseguiu neles, exclamando: “Mas Cristo morreu por mim”, tal como um menino assobiara num cemitério para sustentar a sua coragem.

Ele nos ensinou que estamos seguros de ser aceitos por Deus “quando sentimos a segurança disso nos nossos corações”.

Um escritor protestante, Dr. Claude Beaufort Moss, declara: “A doutrina da segurança é extremamente perigosa, porque “o coração é enganador acima de todas as coisas”. (Jer 17,9), e os sentimentos são guias muito infiéis. Essa doutrina da segurança é que está na raiz do individualismo e do subjetivismo, que são a ruína de todos os herdeiros da Reforma, e, em particular, do Luteranismo” (The Christion Faith, p. 198).

O senso de segurança produziu os mais fervorosos pregadores protestantes.

Isto não é garantia da verdade do ensino deles, nem dá aos outros segurança de serem guias fiéis. No seu livro The Life of Faith, p. 46, Rosalind Murray observa com razão: “Que é que sentiríamos se nos víssemos nas mãos de um cirurgião que, não tendo estudado anatomia, se aventurasse a cortar e abrir os nossos corpos, a operá-los fiado numa “espécie de sentimento”, numa espécie de vaga segurança emotiva de “dever haver alguma coisa” dentro de nós?” Nas coisas sérias da vida, abandonar a razão pelo sentimento é loucura.

Lutero às vezes pode ter-se enganado; mas discutiria você a inata honestidade e sinceridade de propósitos dele?

Em muitas ocasiões os seus pronunciamentos e a sua conduta perdem qualquer direito à nossa fé e confiança. Ninguém poderia dizer que ele fosse habitualmente cuidadoso de dizer a verdade. Ele deve ter sabido que não estava dizendo a verdade quando disse que a Bíblia era desconhecida dos sacerdotes, seus companheiros no Mosteiro que ele abandonou. Certamente sabia que tinha falsificado o texto da Sagrado Escritura para justificar as suas novas doutrinas. Conscientemente exagerou os escândalos do Papado. Para justificar o seu casamento com a ex-freira Catarina de Bora, deu a diferentes pessoas sete razões diferentes para esse passo. Dizia a primeira coisa plausível que lhe vinha à cabeça. Quando Filipe, Duque de Hesse, um sustentáculo da Reforma, pediu permissão a Lutero para tomar uma segunda mulher em aditamento à que já tinha, Lutero deu-lhe permissão para cometer bigamia contanto que Filipe não falasse disso a ninguém. Mas a coisa tornou-se pública, e então Lutero disse a Filipe que negasse Ter-se casado com uma segunda mulher e estar vivendo com ambas. “Que importaria”, escreveu ele a Filipe, “se para maior bem, alguém devesse pregar uma bruta e redonda mentira?” Em 1522 ele atacou Henrique VIII como o “vaso de Satanás”, e fez toda sorte de acusações desaforadas contra ele. Dois anos depois, ouvindo dizer que Henrique vacilava na sua fidelidade a Roma, e esperando ganhar nele um convertido, escreveu a Henrique e ofereceu-se para retratar publicamente tudo quanto antes dissera. Isso admite o seu biógrafo Dr. P. Smith. A verdade por amor da verdade significava muito pouco para Martinho Lutero

Devemos agradecer-lhe ao menos a liberdade religiosa.

Lutero certamente libertou o povo da Igreja Católica. Mas foi uma libertação das restrições impostas pela verdade revelada por Cristo e das leis morais de Cristo. Enquanto isso, ele próprio não concedeu liberdade aos que o seguiram fora da Igreja Católica. Substituiu pela sua própria a autoridade do Papa. Incitou os príncipes germânicos a usarem da força para sustentarem a sua doutrina e suprimirem a de outros pretensos reformadores. Escreveu ao Eleitor de Saxônia, a 9 de fevereiro de 1526, que não permitisse outra doutrina senão a sua. “Num lugar”, disse ele, “só deve haver uma única espécie de sermão”. E exigiu que, se alguém não desistisse de pregar doutrina diferente, “as autoridades entregarão tal sujeito ao mestre conveniente, o Mestre Executor” (Erlangen, vol. 39, pp. 250-254). O historiador protestante P. Wappler, falando da perseguição aos Anabatistas, acentua que “Lutero aprovou a pena de morte infligida pela exclusiva razão de heresia” (Die Stellung, Kurschsens, p. 125).

Lutero foi o verdadeiro campeão da liberdade de pensamento!

Isso é lenda. Na sua Introduction to the History of Literature, Hallam assim escreve: “Os adeptos da Igreja de Roma nunca deixaram de lançar duas censuras sobre os que os deixaram: uma, que a Reforma alcançou o seu fim mediante destemperados e caluniosos insultos, mediante ultrajes de um populacho excitado, mediante a tirania dos príncipes; a outra, que, depois de estimular os mais ignorantes a rejeitarem a autoridade da sua Igreja, ela imediatamente suprimiu essa liberdade de julgamento, e votou a uma violenta detracção, como às vezes à prisão e à morte, todos os que tinham a presunção de desviar-se da linha traçada por lei. Estas censuras, ainda que seja uma vergonha para nós confessá-lo, podem ser proferidas, mas não podem ser refutadas” (Vol. I, p. 200, secção 34).

Ele advogou uma completa separação entre a Igreja e o Estado.

A doutrina dele aplicava-se somente a governantes opostos ao seu ensino. Portanto ele ordenaria aos príncipes temporais não se intrometerem em coisas espirituais, e declararia que o Estado era “do diabo”, e que os cristãos não tinham obrigação moral de obedecer a qualquer das suas leis. Mas tomava posição oposta quando os príncipes germânicos eram favoráveis ao Luteranismo. Então o governante era o “agente de Deus”, usando com razão o poder da espada para reforçar a religião. Então o príncipe era a única autoridade, quer espiritual quer temporal, dos seus súditos! Lutero contradisse-se a si mesmo nesta matéria de acordo com os ditamos da conveniência.

Ele queria liberdade para todos os homens.

Isso ele certamente não advogou. Lutero foi um forte defensor da escravidão. “Já que Deus deu a lei e ninguém a observa”, escreveu ele, “em aditamento ele instituiu mestres-de-varas, condutores e coactores: é por isto que há governantes para conduzir, bater, afogar, enforcar, queimar, degolar e despedaçar sobre a roda as massas do vulgo” (Eriange, vol. XV, 2, p. 276). De outra vez, ele declara: “A escravidão não e contra a ordem cristã, e mente quem diz que é” (Welmar, vol. XVI, p. 244).

É a Lutero que nós devemos a democracia.

Os princípios dele levam diretamente ao totalitarismo. Lutero simplesmente entregou a governantes temporais o despotismo político sobre as consciências dos homens, quando entregou a religião nas mãos do Estado. Scherr, no seu livro German Culture, p. 260, escreve: “Lutero foi o originador da doutrina da entrega incondicional ao poder civil”. Em parte alguma isto é mais claro do que na história da Guerra dos Camponeses. Em 1524 os camponeses da Alemanha revoltaram-se contra a sua opressão pelos nobres, e exigiram a abolição da servidão. Foram incentivados nisso pelos pregadores revolucionários que advogavam a doutrina luterana da liberdade cristã. Mas Lutero precisava do apoio dos príncipes, e incitou estes a matarem os camponeses impiedosamente. O escândalo foi enorme, e os sentimentos dos camponeses para com Lutero converteram-se em ódio amargo. Se jamais alguma coisa serviu para confirmar o povo da Alemanha Meridional na sua determinação de permanecer católico, foi essa perfídia de Martinho Lutero. E digno de nota é que, nos nossos próprios dias, os Nacional-Socialistas da Alemanha, no seu repúdio aos princípios democráticos, tenham verificado que os seus maiores opositores na Alemanha eram a população católica.


Isso não é uma narração deturpada da atitude de Lutero para com a Guerra dos Camponeses?

Não. O historiador protestante H. A. L. Fisher escreve: “A maneira como ele dissociou o seu movimento da rebelião camponesa… e o incentivo que ele deu a um método de repressão tão selvagem que deixou os camponeses germânicos mais indefesos e rebaixados do que qualquer classe social na Europa central ou ocidental, são sérias nódoas no seu bom nome. Os camponeses germânicos eram homens rudes e rudes combatentes; mas as suas queixas eram genuínas, e justas e razoáveis as suas exigências originais” (A History of Europe, p. 506). Em todo caso, temos a própria petulância de Lutero: “Eu Martinho Lutero, durante a rebelião matei todos os camponeses, porque fui eu quem ordenou que eles fossem mortos. Todo o sangue deles está sobre a minha cabeça. Mas eu o ponho todo sobre Deus Nosso Senhor; pois foi ele quem assim me mandou falar” (Tischreden, Erlangen ed. Vol. 59, p. 284).

Lutero foi um reformador social que fez muitos esforços em favor dos pobres.

Os seus verdadeiros ensinamentos conduziram a um maior sofrimento entre os pobres, e impediram todos os esforços para lhes proporcionar alívio. Os pobres eram socorridos pelos mosteiros, mas os príncipes confiscaram para si mesmos a propriedade da Igreja, deixando o povo destituído. E os apelos de Lutero aos seus próprios seguidores para contribuições destinadas ao alívio deles foram um completo fracasso, como ele próprio teve de admitir. Ele ensinara que não havia valor nas boas obras. Disse mesmo: “É mais importante guardar-se contra as boas obras do que contra o pecado” (Wittenberg Ed., vol. VI, p. 160). Para os luteranos não havia o redima os seus pecados fazendo esmolas. Haviam-lhes ensinado: “Já não há mais nenhum pecado no mundo exceto a incredulidade”. Era uma doutrina cômoda, mas sem nenhum freio sobre o egoísmo humano. As obras de caridade diminuíram sob a influência dos ensinamentos dele, em assinalado contraste com o seu aumento onde quer que o espírito católico prevalece.

Você não pode negar que, na esteira do Protestantismo dado a nós por Martinho Lutero, seguiu-se um imenso progresso na arte e na literatura, no campo científico e mecânico, na prosperidade intelectual e material.

Embora tenha havido um extraordinário progresso nessas coisas desde o advento do protestantismo, ele não foi devido ao protestantismo e, certamente não foi devido aos princípios ensinados por Martinho Lutero. O impulso dado aos estudo da arte e da literatura, o desenvolvimento do espírito de investigação, o rápido avanço do interesse educacional e científico, datam do Renascimento, que ocorrera antes de sequer se ouvir falar de Protestantismo. E o movimento teria prosseguido quer Lutero houvesse abandonado a Igreja quer não. De fato, os princípios de Lutero eram opostos ao progresso do saber, e onde ele foi bem sucedido foi em levar a religião a tal descrédito, que aplainou o caminho para um racionalismo incrédulo que corrompeu o movimento progressista e conduziu a um puro materialismo.

Foi Lutero quem ensinou os homens a usar a sua inteligência.

Isso é exatamente o oposto da verdade. No seu livro The Life of Faith, p. 19, Rosalind Murray escreve: “O primeiro erro mais geral e destrutivo é a concepção da Fé como sendo oposta à Razão, como sendo um impulso irracional, como sendo uma emoção alheia ao intelecto e hostil a ele; este é estado de mente para o qual apoiar a nossa fé com a razão é destruí-la; e ele achou uma das suas expressões mais desastrosas na demolidora teologia de Lutero: “A razão deve ser deixada para trás, pois é inimiga da Fé (…), não há nada tão contrário à fé como a lei e a razão” (Tischreden, Weimar VI, 143, 25-35). Erasmo, o humanista, glorificou a razão. Lutero condenou-a. E Erasmo escreveu: “Onde quer que o Luteranismo prevalece, aí as letras morrem”. Até mesmo Melanchthon, companheiro de Reforma de Lutero, teve de admitir: Na Alemanha, todas as escolas estão desaparecendo”.

Isso é contrário a tudo o que nos tem sido ensinado.

E, todavia, é verdade. Não só os católicos, mas também os próprios racionalistas recusam reconhecer qualquer dívida educacional a Lutero. H. A. L. Fisher diz: “Lutero não era nenhum teólogo profundo; e nem era filósofo. Não acreditou na livre investigação ou tolerância, e assim, longe de reconhecer a possibilidade de desenvolvimento no pensamento religioso, aterrou-se firmemente à crença de que toda a verdade quanto aos problemas últimos da vida e do espírito devia ser achada na Sagrada Escritura. Não é pois, de Lutero, selvagem anti-semita, que os movimentos liberal e racionalista do pensamento europeu tiram a sua origem” (A History of Europe, p. 500). A era do moderno progresso educacional começou antes do advento do protestantismo, e teria continuado sem este. Tudo quanto o protestantismo fez foi solapar os verdadeiros fundamentos da fé cristã, preparando o caminho para um desvio geral de toda a religião rumo a um secularismo que culminou em consequências as mais desastrosas para a civilização.

Semelhante conclusão demolidora não pode ser verdadeira!

Ela parece extravagante somente aos que não fizeram um estudo profundo do assunto. Logo desde o começo, os ensinamentos de Lutero levaram a uma desintegração da sociedade e a uma degeneração da moral: No período mais primitivo da Reforma. Martinho Bucer escrevia: “A maior parte das pessoas parece só terem abraçado o Evangelho para sacudir o jugo da disciplina e a obrigação do jejum e da penitência, que pesavam sobre elas no Papado, e para poderem viver conforme o seu próprio prazer, desfrutando sem controle os eus sórdidos e desregrados apetites. Essa foi a razão de haverem elas prestado ouvidos benévolos à justificação pela fé apenas e não pelas boas obras, pelas últimas das quais eles não tinham gosto” (De Regn, vol. I, c. I, 4). Lutero não pôde negar esta acusação. Ele mesmo escreveu: “Por que, depois que aprendemos o Evangelho, nós roubamos, mentimos, enganamos, praticamos gulodice e bebedice e toda sorte de vícios. Agora que um demônio foi enxotado, sete outros, piores do que o primeiro, entraram em nós, como podemos ver nos príncipes, lordes, nobres, burgueses e camponeses. Assim eles agem e assim eles vivem, sem qualquer temor, sem fazerem caso de Deus e das suas ameaças” (Erlangen, vol. 36, p. 411). E onde tudo isso findou? O racionalismo minou a fé luterana na Alemanha e, em menor extensão, no mundo inteiro. Em 1935, por ocasião do seu 70º aniversário, Lundendorff dizia: “Neste momento, nós alemães somos o povo que mais alheia ao intelecto e hostil a ele; este é o estado de mente para o qual apoiar a nossa fé com a razão é destruí-la; e ele achou uma das suas expressões mais desastrosas na demolidora teologia de Lutero: “A razão deve ser deixada para trás, pois é inimiga da Fé… não há nada tão contrário à fé como a lei e a razão” (Tischreden, Weimar VI, 143, 25-35). Erasmo, o humanista, glorificou a razão. Lutero condenou-a. E Erasmo escreveu: “Onde quer que o Luteranismo prevalece, aí as letras morrem”. Até mesmo Melanchthon, companheiro de Reforma de Lutero, teve de admite: Na Alemanha, todas as escolas estão desaparecendo”.

Lutero ensinou a crença nos Evangelhos. Não pode ser censurado pelo procedimento dos que abandonaram a crença nos Evangelhos.

O ensino dele é responsável pela perda da fé nos Evangelhos. Ele rejeitou a única autoridade capaz de preservar a sã doutrina – a autoridade sobrenatural e divina da Igreja Católica. O seu princípio do juízo privado levou a toda sorte de novidades divergentes, e, para impedir estas, ele não teve outro recurso senão apelar para a autoridade do Estado, como supremo até mesmo em assuntos religiosos. Isto, por sua vez, levou a abusos ainda piores. O Estado prazeirosamente lançou mão desse novo acesso ao poder; mas, se o Luteranismo só podia existir ao bel-prazer do Estado, não há nada que impeça o Estado de aboli-lo em favor de uma religião de puro nacionalismo inventada por ele mesmo. Foi em plena conformidade com os princípios de Lutero sobre a supremacia do Estado que os nazistas procuraram impor à Alemanha uma nova religião de “sangue e solo”, distribuindo por todo o país centenas de milhares do folheto Gott und Volk, em que se exortava o povo a escolher entre Cristo e os antigos deuses da Alemanha. O Deão Inge, ex-deão da catedral de S. Paulo em Londres, é profundamente protestante em visão, e tem pouca simpatia pelo catolicismo; todavia, não hesitou em escrever: “Se desejamos achar um bode expiatório em cujas costas possamos depositar as misérias que a Alemanha causou ao mundo, estou cada vez mais convencido de que o pior gênio do mal daquele país não é Hitler nem Bismarck nem Frederico, o Grande, mas sim Martinho Lutero”. E dá como razão disso que, no Luteranismo, “a lei da natureza, que deve ser o tribunal de apelação contra a autoridade injusta, é identificada com a ordem de sociedade existente à qual é devida absoluta obediência”. E acrescenta: “Devemos esperar que o próximo balanço do pêndulo porá fim a influência de Lutero na Alemanha” (citado na revista Time de 6 de novembro de 1944).

Os protestantes no mundo inteiro aceitam os princípios puramente religiosos de Lutero, e não os seus princípios políticos.

Se ele errou nos últimos, não há garantia de ter acertado nos primeiros. E que os seus princípios religiosos eram errôneos. Isto é evidente pelos seus efeitos. As divisões do Protestantismo em tantas seitas litigantes, e a confusão reinante a respeito do que é e do que não é essencial à Fé Cristã, deveriam ser o bastante para fazer todos os protestantes reflexivos reconsiderarem a sua posição. No seu livro Luther and His Work, Joseph Clayton, um convertido do protestantismo à Igreja Católica, escreve: “Até onde Lutero levou os seus sequazes? A que terra de promissão, depois dos anos de peregrinação fora da unidade católica, são agora trazidos os protestantes que datam a sua emancipação de Martinho Lutero? Quatro séculos de jornadear desde que Lutero iniciou o êxodo, e ainda a terra de promissão do Evangelho luterano, tantas vezes emergente, some-se da vista como a miragem se desvanece no deserto. A terra inculta da dúvida foi que os protestantes alcançaram – uma terra inculta juncada de esperanças abandonadas e de credos alijados”.

Os protestantes de hoje não são responsáveis pelas divisões efetuadas pelos seus antepassados.

Isto é verdade. Mas, se nós descobrimos que os nossos antepassados estavam enganados, não há razão para continuarmos no erro simplesmente por terem eles estado em erro. Nem tampouco, naqueles tempos de acesa dissensão, estavam os nossos antepassados tão aptos para ver a verdade como nós, que podemos não somente olhar para trás calmamente depois de todos esses séculos, como também ver como foi que os princípios por eles aceitos operaram na prática. É dever nosso estudar a questão com um amor da verdade só por causa desta. Se vivêssemos nos tempos de Martinho Lutero e conhecêssemos então tudo o que conhecemos agora, teríamos abandonado pelos seus novos ensinamentos a Igreja a que todos os cristãos na Europa haviam pertencido por todos os séculos precedentes? Ou teríamos ficado com a Igreja contra a qual Cristo prometeu que as portas do inferno não haveriam de prevalecer, e com a qual prometer a ficar todos os dias até o fim do mundo? Se deste último modo, certamente é dever nosso voltar à Igreja Católica, a qual os primeiros Protestantes nunca deveriam ter deixado.



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