quarta-feira, 28 de setembro de 2022

O “Deus de Justiça” do Antigo Testamento


A história bíblica, assim como a da civilização profana, não deixam de fornecer indícios de que o homem antigo tinha mentalidade rude – dura cerviz, como dizem, a respeito de seu povo, os autores israelitas (cf. Êx 32,9; 33, 3; Dt 9,6; 10, 16).

Todavia uma dificuldade se põe a quem lê a Sagrada Escritura: esta, em um ou outro caso, parece ensinar que o próprio Deus é o Autor da dureza de coração do homem; dir-se-ia que o Altíssimo se compraz desproporcional. É o que faz com que no Antigo Testamento predomine a figura de um Deus aparentemente “vingativo, mais ou menos arbitrário na aplicação da justiça”.

Ao estudo deste tema dedicar-se-á o presente capítulo. Longe de pretender reconstituir a “teologia” do Antigo Testamento, restringir-se-á ao aspecto “Deus e o pecado na Antiga aliança”.

§ 1.° Um princípio geral

Para se abordar devidamente o assunto, tenha-se em vista um traço já mencionado da mentalidade oriental: o semita tendia a exaltar a ação de Deus em tudo que aconteça na história, sem distinguir se tal efeito é, direta ou indiretamente, causado ou apenas permitido pelo Altíssimo.

Esta tendência, de resto, se enquadra dentro de uma atitude ainda mais geral do pensamento hebraico: o judeu era propenso a atribuir ao dinamismo, ao movimento, o primado sobre os demais valores que constituem um ser perfeito. Era, pois, a fim de mais colocar em realce a suma Perfeição Divina que ele imputava ao Todo-Poderoso intervenção direta, soberana, em tudo que se faz no mundo; Javé, por conseguinte, na Sagrada Escritura, é apresentado em ato de trovejar (Sl 28), ocultar Jeremias e Baruque contra investidas dos ímpios, ditar ou escrever o conteúdo das tábuas da Leis; os israelitas chegavam a admitir que nem o mal fica fora da alçada da atividade divina. Tal modo de falar, apresentando Deus sempre muito envolvido nas façanhas dos homens, acarretava o risco de se encobrir indevidamente outro aspecto da Divindade: a sua absoluta transcendência.

Ao contrário, a mentalidade grega, que neste ponto mais influenciou o pensamento cristão, inclinava-se a exaltar principalmente a perfeição ontológica, o perfeitíssimo Ser de Deus como tal; para ela, a Divindade era objeto de contemplação mais ainda do que sujeito de atividade.

Esta advertência já nos abre a via ao entendimento das passagens bíblicas que falam da intervenção de Deus no mal cometido pelos homens. Passamos a examinar os principais desses textos.

§ 2.°O recenseamento pecaminoso

Não há talvez trecho que mais revele a mentalidade dos autores sagradas na questão proposta do que a narrativa de um recenseamento do povo de Israel instituído pelo rei Davi. Referem-no dois textos bíblicos: 2Sm 24, 1-4 e 1C r 21, 1-4. Comparemo-los entre si:

2SM 24,1. “A ira do Senhor se inflamou de novo contra Israel, e incitou Davi contra eles, dizendo: ‘Vai, faze o recenseamento de Israel e de Judá’.

2. O rei então disse a Joab, chefe do exército, que estava com ele: ‘Percorre, pois, todas as tribos de Israel, desde Dã até Bersabé; faze o alistamento do povo a fim de que eu fique sabendo o total da população’. 3. Joab respondeu ao rei: ‘Que o Senhor teu Deus torne o povo cem vezes mais numeroso do que é agora, e que os olhos do rei meu senhor o vejam! Mas por que se compraz o Senhor meu rei em fazer isso?’ 4. A palavra do rei, porém, prevaleceu contra Joab e contra os chefes do exército; e Joab e os chefes do exército partiram a fim de fazer o recenseamento do povo de Israel”.

1Cr 21, 1. “Satã se levantou contra Israel e excitou Davi a fazer o recenseamento de Israel.

2. Disse então Davi a Joab e aos chefes do povo: ‘Ide contai a população de Israel desde Bersabé até Dã, e trazei-me o resultado, a fim de que eu conheça o seu número’. 3. Joab respondeu: ‘Que o Senhor torne o povo cem vezes mias numeroso! O rei meu senhor, não são todos escravos do meu senhor? Por que é, pois, que o meu senhor pede isso? Por que fazer vir o pecado sobre Israel?’ 4. Mas a palavra do rei prevaleceu contra Joab. Este se foi e percorreu todo Israel, voltando por fim a Jerusalém”.

Particular importante: 2Sm data provavelmente do séc IX a.C., ao passo que 1Cr terá sido redigido nos séc. IV/III a.C.

O autor de 2Sm 24 dava a entender, pouco antes da seção acima, que o povo de Israel incorrera em grave culpa perante Deus; devendo puni-lo, o Senhor houve por bem servir-se, para isto, de uma falta do rei Davi. Diz então o hagiógrafo que Deus mesmo instigou Davi ao pecado; teria, sim, excitado o monarca a promover um recenseamento das tribos de Israel…

Perguntar-se-á de passagem: e que mal podia haver nessa medida de caráter administrativo?

Para os orientais, um recenseamento significava ato de arrogância do homem frente a Deus, pois implicava a intromissão da criatura num domínio reservado só ao Criador – o da multiplicação dos seres vivos. O texto bíblico mesmo insinua esta concepção: refere que Joab, general de Davi, tendo recebido a dita ordem, procurou dissuadir o rei (2Sm 24, 3); e com particular razão o fez: Israel era, por excelência, o povo de Deus; o monarca, mandando recenseá-lo, procedia como qualquer outro soberano, isto é, como se considerasse senhor absoluto dos seus súbitos e contasse unicamente com os recursos de administração humanos. Mais ainda: tendo Deus prometido a Abrãao posteridade inumerável (cf. Gn 15, 5), um recenseamento do povo tomava facilmente o aspecto de verificação do dom de Deus, ditada por falta de confiança.

Não obstante as palavras de Joab, Davi insistiu na execução da ordem; em consequência, foi, com os israelitas, castigado pelo flagelo de uma peste que durante três dias assolou a nação.

Eis como o episódio era narrado no séc. IX a.C.

Um redator bem posterior (séc. IV/III a.C) referiu no livro das Crônicas a mesma história. Tinha, porém, consciência de que 2Sm 24 empregava um modo de falar ambíguo, e resolveu dar mais precisão teológica à fórmula do cronista anterior: atribuiu, pois, a Satã a instigação ao mal que a Deus fora imputada. Mencionava assim o verdadeiro inspirador do pecado de Davi; deixava-nos concluir que o Altíssimo não fizera senão permitir a falta, prestes a englobá-la dentro do sábio plano da Providência.

Aliás, no início da era cristã (ca. De 50 d. C.), também o apóstolo S. Tiago, na sua epístola, reagia contra a falsa nação que o texto de 2Sm 24 podia sugerir:

“Ninguém, ao ser tentado, diga: ‘É Deus quem me tenta’. Com efeito, Deus não pode ser tentado para o mal nem tenta alguém. Ao contrário, cada um é tentado por sua própria concupiscência” (1, 13).

Eis como a Sagrada escritura mesma explica uma de suas passagens obscuras, abrindo-nos o caminho para a exegese de outras semelhantes.

§ 3.° O “Mau Espírito” do Senhor

1. O rei Saul, depois de ter tornado indigno de sua missão, foi rejeitado por Deus. em consequência, via-se frequentemente acometido de acessos de neurastenia, que o levavam até ao desvairo; por duas vezes, enfurecido, tentou matar Davi, transpassando-o com uma lança contra o muro (cf. 1SM 18, 10s.). Ora a Escritura explica isso tudo, dizendo que “o espírito do Senhor se retirou de Saul, e um mau espírito, vindo do Senhor, dele se apossou” (1 Sm 16, 14; o “mau espírito do Senhor” é mencionado outrossim em 1Sm 18, 10; 19, 9).

Como se há de entender uma tal “possessão”?

Nas expressões acima, o vocábulo “espírito” deve ser interpretado à luz de outros trechos do Antigo Testamento, que falam do “espírito de inveja que se apodera de um marido” (cf. Nm 5, 14.30), do “espírito de prostituição” ou apostasia religiosa (Os 4, 12; 5,4) do “espírito de impureza” (Zc 13, 2), do “espírito de sabedoria” (Êx 28, 3), do “espírito de torpor” (Is 29, 10) etc. “Espírito”, em todas essas passagens, designa claramente, conforme o contexto, uma atitude de ânimo, disposições interiores de um indivíduo, em que predomina ora a inveja, ora a infidelidade, ora a luxúria, ora a sabedoria, ora outro atributo (não se trata aí de algum anjo ou demônio). Ilustrados por tais textos, os dizeres de 1Sm significam, pois, que Saul perdeu suas habituais disposições de piedade e deferência para com Javé (“um espírito mau”); esta atitude mesma é mencionada como proveniente do Senhor, porque foi Deus quem permitiu, sim, que Saul fosse infiel e ressentisse as consequências, fisiológicas e psicológicas, do seu erro.

2. Semelhante é a exegese do trecho de Jz 9, 23.: “Deus enviou um espírito mau entre Abimeleque e os habitantes de Siquém”, espírito que provocou rebelião dos siquemitas contra seu chefe. Isto não quer dizer senão que o Senhor deixou que se originassem discórdias graves entre homens que se haviam previamente associado para cometer hediondo morticínio (ou seja, o assassinato de setenta consanguíneos de Abimeleque). A aliança fundada sobre planos pecaminosos não pode ser duradoura; cedo ou tarde, o egoísmo não refreado dos contraentes tende a rompê-la! É o que se dá em especial intervenção de Deus; foi o que se deu no caso acima.

3. Análogos aos textos antecedentes são aqueles onde hagiógrafo diz que Deus endurece o coração dos homens, seja do Faraó, seja do povo eleito.

Tais passagens significam apenas que Deus é o Autor de feitos destinados a promover o bem dos pecadores; todavia os homens, em vez de renderem ao significado providencial de tais obras e se salvarem, à vista das mesmas obstinam-se ainda mais conscientemente no mal, fechando-se nos seus propósitos perversos; destarte a ação divina, em si benévola, torna-se ocasião para que a criatura tome grave atitude pecaminosa. Para os judeus, que em tudo viam a atividade de Deus, isto equivalia a uma ação direta do Senhor sobre o coração humano, visando a obstinação dos pecadores.

Na história do Faraó em particular, o próprio hagiógrafo interpreta a sua expressão literária, afirmando em Êx 8, 11.28 que o monarca mesmo “endureceu o seu coração”, resistindo aos sinais divinos, ou que “continuou a pecar e tornou pesado o seu coração” (9,35); assim procedendo, Faraó reconhecia estar falando contra Deus (cf. Êx 9, 27; 10, 16).

Quanto à missa de pregar confiada ao profeta Isaías, torna-se evidente que não visava obcecar o povo no pecado (como poderia sugerir Is 6, 9s.), se consideram passagens como Is 1, 16-20, em que o profeta exorta os judeus à conversão, e Is 1,25-27, onde prediz que a ação de Deus purificará Israel. As admoestações de Isaías, porém, seriam ocasiões para que muitos, obstinados no mal, fechassem ainda mais conscientemente os olhos à verdade. Paralelamente, na plenitude dos tempos, Jesus, embora soubesse que seus ensinamentos e milagres acarretariam a queda momentânea de Israel, não quis deixar de apregoar a “Boa Nova”, sem tolher a liberdade do homem, o Senhor sabe sempre envolver os desmandos deste dentro de um plano sumamente harmonioso.

Por fim, já próximo da era cristã, o autor do Eclesiástico dava com toda a clareza a norma básica para a exegese dos textos acima, afirmando categoricamente:

“Deus a ninguém nada seja ímpio,

A ninguém concede a licença de pecar” (15, 20).

4. Na linha dos episódios que vimos analisando, ainda se poderia citar o de 1Rs 22, 6-23: é em termos particularmente vivos e insistentes que apresenta o “mau espírito do Senhor”.

Leia também: 

O hagiógrafo conduz o leitor à corte do rei Acab de Israel (874-853 a.C.), o qual desejava fazer uma expedição bélica contra o rei da Síria; antes, porém, de partir para a guerra, resolveu consultar os profetas que o assistiam. Ora havia naquela época não poucos falsos portadores da Palavra de Deus, que faziam carreira na corte real. Interrogados, predisseram ao rei pleno sucesso na campanha. Eis, porém, que em dado momento um autêntico profeta, Miquéias, surge na assembleia dos sedutores e destemidamente anuncia o absoluto malogro da batalha… Contudo, vendo que Acab não lhe dava crédito, tentou persuadir o rei por meio de novo expediente, ou seja, um antropomorfismo impressionante: disse-lhe, pois, ter visto os céus abertos e o Senhor sentado num trono, em meio aos anjos seus conselheiros; deliberavam sobre a maneira mais eficaz de iludir Acab, introduzindo-o à infeliz incursão contra o rei da Síria; apresentou-se então a Javé um dos assistentes celestes, o qual se ofereceu para tornar mentirosos e enganadores todos os profetas da corte de Acab. A proposta tendo sido aceita pelo Senhor, realizara o emissário a sua missão… Na base desta narrativa, que era mero artifício oratório, podia Miquéias repetir ainda com mais vivacidade a sua advertência: as palavras dos profetas encorajando Acab à guerra não eram senão o efeito de uma ação sedutora muito consciente e maliciosa; eram a trama de homens mal intencionados, não hesitasse o rei em abrir os olhos para o perigo que ameaça na expedição planejada!

Neste trecho bíblico, portanto, a visão da corte celeste e do anjo sedutor que Deus envia à terra, não corresponde, segundo a mente mesma de Miquéias, a um fato que se tenha realizado no mundo superno; ela não passa de mero recurso de linguagem destinada a calar no ânimo do rei Acab mais fundo que uma simples admoestação.

Os judeus, principalmente após o exílio (séc. VI a.C.), tinham, sim, a noção de um anjo mau sedutor a quem Javé, conforme um plano sábio, concede licença para desencadear males na terra. Dado que, já no séc. IX a.C., Miquéias e seus interlocutores tenham tido conhecimento de tal espírito tentador, ainda nos é forçoso dizer que o acesso desse anjo maligno junto a Deus e a aceitação dos seus serviços por parte do Senhor são meros artifícios usados pelo profeta para avivar a sua exortação. A realidade correspondente a tais artifícios não é senão a seguinte: Javé resolvera permitir (sem deliberar com os anjos) que Acab fosse seduzido pelos mentirosos oragos da corte e, em consequência, sofresse grave derrota, pois destarte o Senhor lhe faria expiar o morticínio anteriormente cometido contra Nabot (cf. 1Rs 21,1-29).

§ 4.° O Deus que fulmina

Há duas passagens da história sagrada em que Deus é mostrado a punir os homens com a morte, sem que para isto pareça haver culpa proporcional. Daí perguntar-se: será tão cruel procedimento compatível com o conceito de Justiça Divina?

1. O primeiro dos ditos trechos faz-nos retroceder aos tempos de Samuel (ca. de 1050 a.C.). Refere-se à volta da arca do Senhor para o seu santuário em Israel, depois que, raptada pelos filisteus, estivera em terra pagã. Numa das etapas do itinerário, o móvel sagrado pousou em Betsamés, aldeia israelita; foi então que, conforme o texto hebraico atual e a tradução latina da Vulgata, se deu o seguinte episódio:

“O Senhor prostrou os habitantes de Betsamés, por terem olhado para a arca; prostrou setenta homens dentre o povo e cinquenta mil da multidão” (1Sm 6, 19).

O texto, sem dúvida, oferece ao leitor dificuldades de interpretação literárias e teológicas. Os exegetas lhe têm dado explicações diversas:

a) os betsamitas lançaram para a arca do Senhor olhares curiosos, indiscretos ou irreverentes. Ora a falta de respeito para com o Divino foi sempre considerada grave culpa no Antigo Testamento, como se depreende de várias prescrições da Lei mosaica. Assim, por exemplo, rezava cláusula referente aos caatitas ou ministros subalternos do culto:

“A fim de que (os caatitas) vivam e não morram quando se aproximarem dos objetos sagrados… Aarão e seus filhos assinalarão a cada qual o seu ofício… para que não entrem, por um só instante que seja, para ver os objetos sagrados e, em consequência, morram” (Nm 4, 19s).

Os levitas mesmos, homens exclusivamente dedicados ao santuário, não se podiam, sem perigo de morte, aproximar da arca do Senhor antes que os sacerdotes a tivessem recoberto (cf. Nm 4,5.15).

Os levitas mesmos, homens exclusivamente dedicados ao santuário, não se podiam, sem perigo de morte, aproximar da arca do Senhor antes que os sacerdotes a tivessem recoberto (cf. Nm 4, 5.15). De modo geral, a nenhum profano era lícito, sem arriscar a vida, entrar em contato com o Santo, ainda que fosse por mero olhar (cf. Êx 19, 21); por isto, quando a glória do Senhor se tornou manifesta sobre o monte Sinai, Moisés cerrou o acesso à montanha, a fim de que o povo não se aproximasse indevidamente do lugar da aparição (cf. Êx 19,23). Sabe-se, aliás, que os antigos, mesmo pagãos, julgavam que o sagrado é intangível, invisível, inacessível ao homem não iniciado; todos os objetivos religiosos, principalmente os que servem ao culto divino, comportam a presença de uma força misteriosa e temível. Entre os judeus, a irreverência para com as leis do culto era punida com especial rigor, dado o perigo que ameaçava o povo, de adotar usos e crenças do paganismo.

O conhecimento destes particulares certamente contribui para esclarecer certos textos da Sagrada Escritura. Contudo pergunta-se se realmente podia haver culpa grave nos betsamitas por terem considerado a arca, que se oferecia aos olhares de todos. O fato de haverem previamente oferecido sacrifícios ao Senhor (cf. 6, 15) não atesta o seu respeito religioso?

b) Considerando tais dificuldade, há quem julgue que o betsamitas foram punidos por anteriores pecados do povo ainda não expiados;

c) Flávio José, historiador judaico do séc. I d.C., supõe que, simultaneamente com o olhar, alguns israelitas hajam indevidamente tocado a arca (Ant. 6, 1, 4).

Nenhuma dessas interpretações satisfaz plenamente.

Na verdade, o problema parece estar mal formulado. O texto hebraico dos livros de Samuel chegou até nós em estado de conservação deficiente; em particular, o versículo 1Sm 6, 19 parece ter sido maltratado pela tradição literária, pois refere duas cotas de vítimas (setenta e cinquenta mil), das quais a segunda é evidentemente errônea; a cifra de cinquenta mil ultrapassaria o número de habitantes de toda a região de Betsamés; além disso, não é mencionada por alguns manuscritos hebraicos nem por Flávio José (Ant. 6, 1, 4); terá sido interpolada, como julgam bons exegetas modernos. Considerando isto, os críticos bíblicos dão preferência à forma do texto de 1Sm 6, 19 apresentada pela tradução grega dos LXX:

“Os filhos de Jeconias, dentre todos os moradores de Betsamés, foram os únicos que não se alegraram ao ver a arca do Senhor. O Senhor então prostou setenta homens dentre eles”.

Os filhos de Jeconias, que, de resto, nos são desconhecidos, teriam tomado uma atitude de indiferença, contrastando com o entusiasmo sagrado do povo. O escândalo assim suscitado teria provocado a punição de setenta membros de tal família! A necessidade de preservar a verdadeira fé e excitar a consciência de um povo de dura cerviz podiam exigir tão severa intervenção de Deus, de mais a mais que o episódio se dava numa fase da história assaz remota, quando Israel ainda era muito rude. E – note-se bem – a advertência produziu seus efeitos, pois diz o texto sagrado (6, 20) que os betsamitas reconheceram no ocorrido um sinal, não da crueldade, mas da santidade de Deus!… Em geral, os israelitas temiam, mas não criticavam, os castigos infligidos do Senhor.

2. Trecho que, por análogos motivos, chama a atenção é de 2Sm 6, 6s. (paralelo a 1Cr 13,7-10).

O hagiógrafo continua a descrever o itinerário da arca do Senhor em Israel, itinerário interrompido pela permanência da mesma em Cariatiarim ou Baalá, pouco após o episódio de Betsamés acima referido (cf. 1Sm 7, 1). Tendo estado setenta anos em Cariatiarim, o santuário foi transferido para Jerusalém, onde Davi erigira a capital do seu reino. Aconteceu, porém, que durante o trajeto certo varão chamado Oza percebeu que a arca, posta sobre um carro de bois, corria o risco de cair por terra; tocou-a então com as mãos a fim de ampará-la; logo, porém, o Senhor, enfurecido, o fulminou com a morte.

Tal punição talvez desnorteie a boa mente do leitor… Como interpretá-la?

Antes do mais, rejeitar-se-á, como descabida, a sentença de que o exegeta moderno Procksch se faz porta-voz: “A arca aparece como que carregada de eletricidade sagrada, da qual uma centelha fere o homem profano como um raio”. Outros autores (Fritz Kahn, Denis Papin), cedendo à imaginação, explicam que os sacerdotes de Israel, conhecedores dos segredos da eletricidade, haviam feito da arca “um autentico condensador elétrico, que se carregava mediante eletricidade atmosférica”; e isto a fim de explorar a religiosidade do povo! Esta sentença, dado o seu caráter gratuito, é irrisória; carece de fundamento tanto no texto sagrado como na própria história da civilização humana (que assinala a utilização das forças elétricas a época relativamente recente). Entre outras coisas, note-se que a causa da morte de Oza não parece proceder da arca mesma; ao se ler a narrativa, dir-se-ia que houve uma intervenção de Deus entre o toque e a fulminação.

Mas por que terá o Senhor procedido de maneira tão prepotente?

A ação de Oza, considerada em si, representava uma falta contra as prescrições de culto israelita. Com efeito, não era permitido aos hebreus violar os objetivos sagrados com olhares indiscretos (como acima ficou dito); muito menos lhes era lícito tocá-los. Tão rigorosa era mesmo esta última proibição que os próprios levitas, embora fossem encarregados de transportar os objetos do culto (turíbulos, pinças, bacias, etc…), deviam carregar a arca do Senhor servindo-se de barras, e barras que jamais deveriam ser separadas do móvel, a fim de não se dar ocasião a que alguém o ousasse tocar diretamente (cf. Êc 25, 15).

A pena de morte infligida a Oza por haver transgredido a proibição poderá parecer excessivamente severa. O episódio, porém, há de ser estimado à luz da concepção particularmente rigorista com que em Israel era tachada a violação das coisas santas (cf. pág. 178); ademais é preciso não esquecer que no Antigo Testamento nos defrontamos com um povo que muitas vezes só se rende às impressões fortes.

Uma dúvida ainda fica: terá tido Oza ao menos a consciência de que praticava algo de condenável? Não parece que, ao contrário, era boa a sua intenção, já que desejava preservar de incidente a arca do Senhor?

O texto bíblico não é muito claro neste particular. O original hebraico diz que Oza foi punido por sua “falta” (‘al-hassal, também “erro, negligência”). Como quer que seja, os antigos israelitas não distinguiam muito exatamente entre pecado formal, voluntário, consciente, e pecado material, inconsciente, involuntário; consideravam não raro apenas a ação externa, sem levar em conta a intenção de quem agia. Aliás, nem a teologia, muito apurada, dos rabinos contemporâneos de Cristo fazia distinção entre pecado formal e pecado meramente material, inconsciente. Assim é que no Antigo Testamento a longa seção de Lv 4, 1-5, 6 trata de faltas cometidas por ignorância; prescreve, não obstante, sacrifícios expiatórios para tais ações. Conforme 1Sm 14, 24-45, Jônatas se viu ameaçado de sofrer a morte por ter violado um voto que Saul, seu pai, fizera em nome de todo o exército, voto, porém, de que Jônatas não tinha conhecimento; salvou-o o bom senso do povo, que intercedeu pelo réu inconsciente. A viúva de Sarepta, tendo perdido o filho, julgava que isto lhe podia ter acontecido em punição de faltas que ela mesma ignorava (cf. 1Rs 17, 18).

Considerados estes particulares, não causa estranheza que Oza, pelo simples fato de ser cometido um ato em si mau, embora animado por boa intenção, se possa ter tornado merecedor de castigo. Não falta, porém, exegetas que, em última análise, julgam necessário renunciar ao entendimento pleno do episódio de 2Sm 6, 6s., já que o texto sagrado não fornece indicações suficientes para tal.

§ 5.° Conclusão

Os episódios acima analisados não foram consignados nas Escrituras para fazer tropeçar o leitor cristão; tal finalidade seria indigna de Deus. Trazem, antes, um ensinamento religioso: veja-se neles mais um aspecto dos preparativos pelos quais o Senhor quis fazer passar o gênero humano a fim de que nós, cristãos, pudéssemos finalmente compreender a “justiça melhor” (cf. Mt 5, 20) do Evangelho.

Ao lado dos trechos que manifestam rude mentalidade religiosa em Israel, encontram-se outros que os completam, pois dão a ver que o Senhor Deus, ao mesmo tempo que se revela como “Deus de Justiça”, mostrava também ser o Deus de Bondade e Amor.

Com efeito, o primeiro preceito da Lei mosaica era o do amor, amor a Deus:

“Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6, 5).

O segundo lhe era semelhante:

“Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19, 18; cf. 19, 8-10).

A estes dois mandamentos se podiam reduzir toda a Lei, todas as admoestações do Profetas e, em geral, a Escritura do Antigo Testamento, como reconhecia o Doutor da Lei perante Jesus (cf. Mt 22, 34-40; Mc 12, 28-31; Lc 10, 27);

Da sua parte, o Senhor, por meio de Moisés, lembrava que se revelara aos Patriarcas e exercera a sua Providência para com Israel, não em virtude de algum direito ou merecimento do povo, mas por mero amor:

“O Senhor vosso Deus vos escolheu… dentre todos os povos que estão sobre a face da terra. O Senhor aderiu a vós e vos escolheu, não porque ultrapasseis em número todos os povos; sois o mínimo de todos os povos. Mas porque o Senhor vos ama e quis cumprir o juramento que fez a vossos pais” (Dt 7, 6s.).

“Sabeis que não é por causa da vossa justiça que o Senhor vosso Deus vos dá esse belo país (Canaã) como propriedade; sois um povo de dura cerviz” (Dt 9, 6; cf. 4, 37).

Voltando-nos agora para os livros de Samuel em particular, donde procede a maioria dos textos considerados neste capítulo, observamos os seguintes traços complementares:

O Senhor que pune é também Aquele em cuja benevolência o povo deposita profunda confiança, pois é o grande Aliado e Tutor de Israel, principalmente na guerra: 1Sm 4,5; 2Sm 5, 10; 8, 6-14.

Talvez nenhum livro histórico da Sagrada Escritura ponha tanto em realce a piedade pessoal, as íntimas relações dos fiéis com o Senhor, como os livros de Samuel. É o que se verifica na história de Ana, que, devota e confiante, pede um filho (1Sm 1, 11.20.26), na celebração frequente dos sacrifícios populares (1Sm 2, 13.18s.), no entusiasmo das “escolas profetas” (1Sm 10, 5; 19, 20), no zelo religioso sincero, embora pouco esclarecido, de Saul (cf. o voto de Saul em 1Sm 14, 24-35; seu desejo de oferecer sacrifícios em 1Sm 13, 9-12; 15, 9.15; outras afirmações em 11, 13; 17, 37; 28, 6); principalmente no amor de Davi, que promove o culto sagrado (1Sm 26, 19s.; 2Sm 6, 5.14-16.22; 12, 16-23; 15, 25.31). Davi sabe que a sua vida é cara a Deus (1Sm 26, 24; 2Sm 7, 18s.21); o seu arrependimento, após o pecado, testemunha amor, não temor apenas (2Sm 12, 13; 24, 10).

Por fim, embora muito valor se desse ao aspecto exterior da santidade ou da virtude, o Autor Sagrado inculcava que Deus vê além das aparências: “O homem considera a face; Deus, porém, percebe o coração” (1Sm 16, 7).

Retirado do livro: Para Entender o Antigo Testamento. Estêvão Bettencourt.




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