“Ó eterna verdade, e verdadeira caridade e cara eternidade! Tu és meu Deus, para ti suspiro dia e noite.” (Confissões, Santo Agostinho). Acompanhe mais um resumo sobre a vida deste grande bispo e doutor da Igreja.
13 novembro 2023
FOTO: CATHOPIC
Entramos em um livro mais denso a nível filosófico e com grande riqueza espiritual. Neste trecho das Confissões temos uma abordagem menos biográfica e a exposição de certos argumentos do autor de forma dialógica, lembra bem certas obras platônicas, como a estrutura da República do filósofo grego. Superadas certas dificuldades, com a ajuda deste resumo, a recompensa valerá muito a pena. É um primor de escrita com grande proveito para nossas almas.
Quanto à intimidade divina, consideramos o que está presente nas primeiras frases do livro: “fizeste-nos para ti, e inquieto estará nosso coração, enquanto não repousa em ti” (Confissões, I, 1), na página onde expressa sua conversão no belo poema: “tarde te amei” (Confissões, X, 38) e o trecho onde relata a descoberta da verdade, após a leitura dos neoplatônicos, aqui no livro VII, particularmente marcantes para qualquer alma apaixonada por Deus. Este trecho é um prelúdio do livro seguinte, onde narrará sua conversão.
Além desta interessante particularidade, aborda os seguintes temas: as criaturas; Deus; o problema do mal; ainda sobre o maniqueísmo; a refutação à astrologia; a leitura filosófica ajuda, mas é da humildade, que provém a fé e o encontro com a verdade. Destes tópicos, fiquemos atentos para os dois mais significativos, que são: a análise sobre o mal e a essência de Deus e sua descoberta, tornando a obra por demais envolvente e instigante. Cada vez mais se compreende a máxima agostiniana: creio para compreender, compreendo para crer. As Confissões são um tratado de fé e razão.
Quem é Deus?
As criaturas foram todas criadas boas, assim saíram das mãos do Criador. Embora haja limitações e algum grau de imperfeição, considerando certas partes, são todas boas e consistentes, considerando-se o conjunto harmonioso de toda a obra criadora. Temos aqui um filosofo cristão afirmando que tudo foi criado bom, embasando-se certamente na literatura bíblica do livro das origens, assim chamado o Gênesis. Particularmente interessante é a derivação da bondade, que procede do Criador em direção às suas criaturas. Sobre a existência, afirma que as “coisas existem e não existem”, sendo de subsistência perene e perfeita, unicamente Deus. Quanto às criaturas, das que tem uma dimensão espiritual, não sujeitas ao tempo e ao espaço, como os seres angelicais, podem vir a decair, entrando no ciclo de geração e corrupção. Só Deus é o Eterno, que perdura pelos séculos.
Ainda sobre Deus, afirma sua incorruptibilidade, demonstra que jamais pode ser afetado pelo mal, diferentemente da luta dualista na qual os maniqueus acreditavam: havia uma tese de que o mal, invadindo o “espaço do bem”, o atingiria, corrompendo-o. Tal argumento foi desmascarado pelo aluno Nebrídio, que disse: Deus não é atingido pelo mal, por ser imutável e incorruptível. Igualmente o Verbo Divino, ainda que contenha em si natureza humana – para os maniqueus, a alma era considerada corruptível e Cristo não era um ser igual a Deus – poderia estar sujeito a tal deficiência. O Deus, incorruptível, faz cair as teses maniqueístas.
A verdade sobre Deus
Agostinho, ao escrever sua obra, volta ao passado, para explicar como concebia Deus e, em outros trechos, afirma Deus com a precisão do pensamento cristão. Ele tinha dificuldade de conceber Deus, imaginando-o em uma imagem corpórea que se estendia pelos espaços finitos e infinitos. Deus é espírito, não se confundindo com a matéria como pensam os panteístas. Ele é criador, dá forma aos seres criados. Em Deus, eles encontram sua consistência e são mantidos na existência. A ascensão gradual do conhecimento de Deus assim o descreve Santo Agostinho como em um fluxo de um processo cognitivo: da percepção dos sentidos que informam à alma as realidades corpóreas, passando pela habilidade cogitativa que estima, classifica e associa as imagens na mente, formando raciocínios, que são juízos ainda oscilantes na captura da verdade das coisas; por fim, a inteligência é iluminada de tal sorte por uma luz que a fornece a certeza de que o que é imutável é preferível ao mutável. A via da inteligência consegue compreender Deus, ainda que não plenamente, e em ato anterior à adesão que se dá por meio da fé à Verdade Revelada.
Por outro lado, ressalta como a leitura dos neoplatônicos o ajudou a descobrir Deus, o que transcrevemos aqui em parte:
“X, 16. Mas, incitado por aqueles livros a voltar para mim mesmo, penetrei no meu íntimo conduzido por ti, e consegui porque tu te tornaste meu auxílio. Penetrei e vi, pelo olhar de minha alma, pelo que vale, acima do próprio olhar de minha alma, acima de minha mente, uma luz imutável, não esta luz ordinária e visível por qualquer carne, nem uma maior, mas do mesmo gênero, como se brilhasse com muito mais claridade e ocupasse todo o espaço; não era assim, mas diferente, bem diferente de tudo isso. E não estava acima de minha mente como o óleo está sobre a água ou o céu está sobre a terra, mas era superior, porque me fez, e eu inferior, porque fui feito por ela. Quem conhece a verdade a conhece e quem a conhece, conhece a eternidade. A caridade a conhece. Ó eterna verdade, e verdadeira caridade e cara eternidade! Tu és meu Deus, para ti suspiro dia e noite. E, quando te conheci pela primeira vez, tu me levantaste para que visse que o que via era, e que eu, o vidente, ainda não era. E golpeaste com força, irradiando em mim, a debilidade do meu olhar, e eu estremeci de amor e de horror: e descobri que estava longe de ti, no reino da dessemelhança, como se ouvisse tua voz dizer do alto: “Eu sou o alimento dos grandes: cresce e me mastigarás. E não me mudarás em ti como o alimento de tua carne, mas tu mudarás em mim”. E reconheci que educaste o homem pela sua iniquidade e fizeste minha alma se desfazer como uma teia de aranha, e disse: “Por acaso é nada a verdade, se não se expande por espaços finitos ou infinitos?”, e tu clamaste de longe: “Sim, certamente, eu sou aquele que é”. E eu ouvi, como se ouve no coração, e absolutamente não havia como duvidar: teria sido mais fácil duvidar de minha vida do que da existência da verdade, que se mostra aos intelectos através das criaturas.” (Confissões, VII, 16)
O mistério de Cristo
Além disso, Agostinho descreve a dificuldade de conceber Jesus, Verbo feito carne, como uma das pessoas da Trindade. Era por demais elevado para ele, a sublimidade da humildade de Cristo, que “vestiu a nossa carne”. Provavelmente influenciado pelo maniqueísmo, que afirmava ser má a carne. Era um “alimento” que Agostinho ainda não estava preparado para acolher: a “fraqueza” do Filho de Deus, que desceu até nós, para elevar-nos até Ele. Em progresso na fé católica, faltava-lhe abraçar este mistério. Agostinho achava Cristo um homem prodigioso, um grande profeta e pregador, como ainda hoje muitos acham. Enquanto assim pensava, Alípio, seu amigo, tinha uma outra concepção. Entendia que os católicos interpretavam um Deus que agia em Cristo, usando de sua carne, mas despossuído de alma e inteligência humanas. Descobrindo adiante ser uma heresia, chamada de “apolinarista”, abraçou integralmente a fé católica.
Mal como consequência do afastamento de Deus
O tema do mal é abordado de maneira interessante neste livro, valendo a pena que o leitor se debruce sobre os parágrafos: 4, 6, 7, 11, 18, 19 e 22. O mal é uma perversão da vontade para Santo Agostinho. Esta perversão se dá pelo afastamento do homem do centro de sua interioridade que é Deus, quando se dirige às suas criaturas. A outra conclusão acerca do mal consiste na possibilidade da corrupção parcial do que é bom. Por que é possível este afastamento? Por meio da vontade livre, o homem pode deslocar-se de Deus e lançar-se na direção das criaturas, distanciando-se do “centro gravitacional” de sua existência.
O mal não é uma substância, mas o que é uma substância? A substância é um ser concreto, um sujeito, um ente criado e que subsiste por si mesmo, recebendo características, sujeito a mudanças. O mal, portanto, não é uma criatura e Deus não pode ser atingido por ele. O mal é a decadência do estado de algo criado. Esta substância decadente passaria a ser privada do bem em alguma medida.
O mal não pode atingir Deus
Para entender melhor, verifiquemos o seguinte. Deus criou seres superiores e outros inferiores no grau de beleza, utilidade e perfeição. Deus fez o homem e as criaturas inferiores a ele em uma ordem hierárquica, tendo-os feito todos eles, bons. Há bens da criação que são harmônicos em si, entre si e alguns não se harmonizam com outros, pelo menos em parte. Alguns deles, a nosso juízo, poderíamos até imaginá-los que fossem melhores, mas Deus mesmo nada criou mal. O mal não pode atingir Deus, nem pode Deus tê-lo criado ou se utilizado dele para criar algo. Quanto ao que é bom, pode corromper-se senão, ou seria incorruptível, o que só se refere a Deus ou não seria bom, tornando impossível a corrupção, por já estar totalmente corrompido. Somente o que é bom, não sendo Deus, pode estar sujeito a uma corrupção, e uma corrupção parcial.
Deus não pode ser afetado pelo mal, porque se fosse, seria corruptível, mutável, deixando de ser Deus. Se não tivesse criado tudo com seu atributo de bondade, não seria onipotente. Mas como seria isto possível, sendo Deus poder e vontade ao mesmo tempo?
A refutação à astrologia, o faz pela segunda vez na obra. Após citar o caso dos gêmeos em livro passado, analisa, agora, dois homens – um rico e um pobre – nascidos em momentos absolutamente idênticos, mas que tiveram sortes bem diversas. Quando há coincidências, atribui ao acaso e não a pretensa capacidade de prever o futuro, julgando-a absolutamente falsa e não aderente à realidade.
Outros temas abordados no Livro VII dizem respeito a humildade, a fé e a importância da leitura. A humildade se aprende do verbo divino que veio “vestir a nossa carne.” Afirma ser benéfica a filosofia, mas garante que a verdade divina só é alcançável por meio da fé, plenamente eficaz para o alcance do fundamento da piedade. Agora, revestido de humildade, após ter achado as escrituras mais simplórias do que as obras de Cícero, aponta as cartas 4 paulinas como superiores aos livros platônicos, pois que a graça apresentada por Paulo é o auxílio à fé e à razão para o encontro definitivo com a Verdade.
Delcy Pereira Carvalho Filho
Graduando em Filosofia – Academia Atlântico
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Fonte: comshalom.org
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