domingo, 17 de novembro de 2024

Confissões: Livro IX – O Batismo e a volta para a África

Delcy Pereira apresenta mais uma chave de leitura do livro Confissões de Santo Agostinho. Neste capítulo, o doutor da Igreja fala sobre as virtudes de sua mãe, Santa Mônica.

Santo Agostinho e sua mãe, Santa Mônica

Chegamos ao trecho que antecede o belíssimo tratado sobre a memória (Livro X) e os comentários de alguns capítulos do Gênesis, que são os últimos livros das Confissões, esta tão fundamental obra do Cristianismo e principal exposição do espírito do Bispo de Hipona.


Aqui – Santo Agostinho – inicia, como acontece em vários trechos das Confissões, com uma ação de graças a Deus por lhe ter recuperado o livre-arbítrio. Apresenta, em seguida, o encerramento de sua trajetória enquanto titular da cátedra de retórica em Milão, faz referências aos amigos Verecundo, Nebrídio, relata sua atividade de escritor, comentando, meditando e rezando os Salmos em Cassicíaco, descreve a atmosfera espiritual que cercou o seu batismo, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio. Dedica uma parte ao canto litúrgico – no livro definido como cântico ambrosiano (certamente por influência do Bispo Santo Ambrósio). O Livro IX encerra com relatos emocionantes acerca de Santa Mônica: a educação que ela o tributou, a relação dela com o esposo, suas grandes virtudes, a sua morte, seu funeral e a comovente oração dele durante as exéquias de sua mãe.
Louvor a Deus

Agostinho inicia louvando a Deus por tê-lo socorrido, libertando-o da corrupção do espírito, por uma espécie de restituição do seu próprio livre-arbítrio, que estivera outrora cativo – a libertação do homem de sua aptidão para escolher, isto é impressionante, mesmo em escritores cristãos, quando, em sua maioria falam do pecado, da graça e da adesão à proposta cristã mediante a fé. Tudo isso envolve a adesão da inteligência e o esforço do crente, mas a purificação do livre-arbítrio, como algo anterior à adesão pela fé, parece algo surpreendente. Finaliza com a belíssima troca operada por Deus em si – as delícias que outrora o atraíam: a vaidade, as paixões, a vanglória e o sensualismo passaram a ser incomparavelmente inferiores às delícias e o gozo da Divina Presença.


Com relação à sua trajetória de abandono da cadeira de retórica, sentia-se como alguém a quem não cabia mais realizar o comércio da mentira, que anteriormente havia rendido lucros – o ensino da arte do convencimento, que, por conseguinte, gerava bons resultados aos seus alunos. Ele estava se programando para deixar o cargo público por volta das férias da vindima, que era o período após o final do verão, quando se iniciava a da colheita das uvas. Pensando em abandonar, ainda antes, refletiu se não seria o caso de soberba. Embora nutrisse respeito pelos pais de seus clientes, que lhe pagavam boa soma, sentia alguma crise de consciência ao permanecer no ofício. Quando foi acometido de problemas pulmonares que lhe diminuíram a capacidade vocal, fragilizando seu serviço, tinha um bom álibi para antecipar a demissão, mas, pacientemente, perseverou até o tempo oportuno de sua saída para dedicar-se ao serviço de Deus. Por fim, renunciou aos ardis das falácias enganosas, da capciosidade dos discursos sofísticos para humildemente se entregar ao Senhor.

Tema da amizade

Voltando ao tema da amizade, Agostinho recorda Verecundo, amigo casado com esposa cristã, que lhe emprestou uma propriedade em Cassicíaco para que rezasse e meditasse um pouco. Este amigo, desmotivado a seguir a Cristo como casado, acabou posteriormente convertido, antes de sua morte, o que alegrou Agostinho, que louvou a Deus por tê-lo retirado de sua morada em Cassicíaco para dar-lhe morada mais excelente, nas mansões celestiais.

Quanto a Nebrídio, Agostinho ainda o observava preso ao maniqueísmo, que atribuía deficiência à matéria, tendo-a por má, o que lhe dificultava crer no Filho de Deus, gerado na carne. Vencidas as barreiras à fé, Agostinho o encontra católico logo após o seu batismo, o que lhe causou também muita alegria. Encerra dizendo que o amigo repousou no seio de Abraão. Nas conversões dos dois amigos, não há referência direta da influência de Agostinho.

Tempo de recolhimento

Em Cassiciaco dedica-se à oração, meditações em uma espécie de retiro pessoal. Nesta ocasião realiza mais uma empreitada literária: escreve comentários sobre os salmos. Nestes dias de recolhimento, esteve em companhia do amigo Alípio e de sua virtuosa mãe, Santa Mônica. Esta temporada ficou marcada, conforme ele mesmo relata: “(…) quantas exclamações me inspirava a leitura desses salmos, e como eles me inflamavam no teu amor! Desejava ardentemente recitá-los, se possível, para o mundo todo, a fim de rebater o orgulho do gênero humano. E, no entanto, são cantados no mundo inteiro, e nada pode furtar-se ao seu calor.” (Confissões, IX, 7)

Em meio às meditações, recorda dos ex-companheiros maniqueístas e, em oração, desejaria que estivessem perto dele a ponto de que ouvissem as suas preces intercaladas entre os salmos, num sincero desejo de compaixão, que os fizessem descobrir a verdade que, por graça, ele tinha alcançado. O Salmo mais citado neste trecho das Confissões é o de número quatro, cujo teor transcrevemos aqui:

“Quando te chamo, responde-me,
Deus, meu defensor; tu que no  me deste folga, tem piedade de mim, ouve a minha oração.
Senhores, até quando será ultrajada minha honra, amareis a falsidade e buscareis a mentira?
Sabei: o Senhor favoreceu seu fiel, o Senhor me ouve, quando o chamo.
Tremei e deixai de pecar, Refleti no leito e guardai silêncio; Oferecei sacrifícios legítimos e confiai no Senhor.
Muitos dizem: Quem nos fará provar a felicidade, se a luz de teu rosto, Senhor, se afastou de nós?
No coração me infundiste mais alegria, do que quando transbordam seu trigo e seu vinho. Em paz me deito e logo adormeço, porque só tu, Senhor, me fazer viver tranquilo. “

(Salmo 4 – Bíblia do Peregrino)
Durante os dias de lazer, há ainda um momento em que Agostinho é acometido de uma dor de dentes, que se agravou a ponto de ele não poder falar. Ele relata que, logo que dobrou os joelhos em piedosa súplica, após ter clamado, a dor desapareceu, segundo ele mesmo relata: “nunca havia experimentado nada semelhante em toda a minha vida. Aquele sinal penetrou no mais intimo de minha alma, e, alegre na minha fé louvei o teu nome.”

(Confissões, IX, 12).

Batismo

Tendo abandonado o cargo público de professor de retórica, encaminhou-se para o Batismo em Milão, com Alípio e Adeodato. Cita o filho, gerado no pecado, como alguém de elevada erudição e, recuperado no Senhor, adquiriu virtudes que o conduziram ao banho da regeneração. Escreve um livro em homenagem ao filho – O Mestre – no qual os dois dialogam. Agostinho destaca a sabedoria do filho, algo incomum para um jovem de dezesseis anos.

Na cerimônia do Batismo, testemunha as lágrimas que verteram de sua face, comovido pelos cantos litúrgicos, que nele suscitaram piedade, quando cantavam o coro dos fiéis. Esta parte dedicada à música ele denomina-os de cânticos ambrosianos (certamente por influência de Ambrósio). Ressalta-lhes a beleza e atesta que serviam de meio de encorajamento, ajudando os fieis a vencerem o tédio e a tristeza, sobretudo, porque nesta época o Bispo Ambrósio, estava sofrendo forte perseguição por parte dos arianos.

Outra parte interessante do livro diz respeito a trasladação dos corpos de dois mártires: Protásio e Gervásio. O que aconteceu nesta ocasião? Possessos eram libertos de demônios e um homem cego, ao tocar no ataúde dos santos, teve sua cura milagrosamente operada.

Santa Mônica

Passemos agora à parte que se refere a Santa Mônica. Não é a primeira vez que cita sua virtuosa e amada mãe na Obra, após ter comentado sobre o filho. Inicia relatando como uma criada de sua mãe havia lhe educado rigorosamente para virtudes como moderação, cooperando em tudo para livrá-la de propensões a vícios. Havia uma adega na casa de seus pais, onde Mônica recolhia vinho numa caneca para abastecer uma jarra e leva-la à casa. Pouco a pouco, Mônica provava na ponta dos lábios, chegando ao ponto de escondidamente, tomar eventualmente um copo ou outro de vinho. A criada, ao saber, num intuito de desgostá-la, repreendeu-a severamente, chamando-a de beberrona. Diante desta contrariedade, Mônica foi impelida a interromper imediatamente o mau hábito, que poderia tornar-se vício.

Enquanto esposa, demonstrava capacidade de conquistar seu marido para Deus por meio de suas virtudes. Era-lhe submissa, não demonstrava ressentimentos e mantinha respeito ao marido embora tivesse que lidar com infidelidades conjugais e outros desafios. Mônica sabia seguir à risca as obrigações matrimoniais. Monica era, ainda, mulher de espirito conciliador, extremamente hábil na educação dos filhos, no governo da casa e gozava se uma capacidade de, não só extinguir inimizades, mas se percebia que uma amiga se referia a outra com palavras malévolas, habilmente as expurgava, suscitando palavras benévolas, que provocassem reconciliações.

Em Óstia Tiberina, onde morava com a mãe, Agostinho passa a meditar, juntamente com ela, sobre a Sabedoria Incriada e o Verbo Eterno. Passando pelas coisas sensíveis, pelo criado e temporal, pela psiquê, chegam até Deus numa contemplação filosófica, não assemelhando-se, a priori, em um diálogo oracional. Após estas meditações, Agostinho registra as últimas palavras de sua mãe: “meu filho, nada mais me atrai nesta vida, não sei o que ainda estou fazendo aqui, nem porque ainda estou aqui. Já se acabou toda a esperança terrena. Por um só motivo, eu desejava prolongar a vida nesta terra: ver-te católico antes de eu morrer. Deus me satisfez amplamente, por que te vejo desprezar a felicidade terrena para servi-lo. Por isso, o que é que eu estou fazendo aqui” (Confissões, IX, 26)

Oração pela mãe

Após uma doença que durou exatos nove dias, Mônica veio a falecer aos cinquenta e seis anos, quando Agostinho tinha trinta e três. Agostinho alegrou-se muito pelo testemunho da mãe. Acolheu e consolou seu filho, Adeodato, pela partida dela e retirou-se um pouco, à parte, junto com amigos para desabafar enquanto os ritos funerários estavam sendo preparados. Inúmeras mulheres se aproximaram para testemunhar a passagem de Mônica desta vida para a outra. Agostinho sentiu muito a perda da mãe, a quem amava muitíssimo e a quem devia muito por quem ele havia se tornado. Após recuperar-se, quando a dor amainou um pouco, fez uma belíssima oração por ela, pedindo a Deus o perdão de todos os seus pecados, em detrimento do Acusador que ela pudesse repousar em paz ao lado de Patrício, esposo a quem santamente havia servido. Mônica deixou um legado e um testemunho que vararam os séculos, chegando até os nossos dias.

Leia mais sobre a série de Resumos de Confissões:

Delcy Pereira Carvalho Filho
Graduando em Filosofia – Academia Atlântico

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