O mistério da SS. Trindade, embora não possa ser cabalmente penetrado pela inteligência humana, é ilustrado pela mesma a partir da analogia (imagem e semelhança) de Deus existente no homem. Os atos de conhecer e amar do homem vêm a ser espelho a partir do qual a Teologia clássica tenta esclarecer a vida eterna do próprio Deus.
Depois de mostrar a fundamentação bíblica do mistério da SS. Trindade, passamos ao estudo sistemático deste artigo de fé. As paginas subsequentes terão, no mínimo, a vantagem de evidenciar que o dogma da SS. Trindade não exige abdicação ou renúncia do cristão à sua inteligência.
1. As processões em Deus
Os teólogos tentaram, desde os primeiros séculos, penetrar de algum modo no mistério da vida de Deus Uno e Trino. Não há dúvida, este escapa à plena compreensão da inteligência humana, que é sempre finita. Como quer que seja, a reflexão teológica pode mostrar não somente que o mistério da SS. Trindade não é um absurdo, ([1]) mas também que grande harmonia e suma conveniência existem nesse mistério.
Eis como, em síntese, se pode ilustrar o mistério da SS. Trindade.
A S. Escritura, ao falar do Pai e do Filho, supõe procedência (ou processão)([2]) do Filho em relação ao Pai. No tocante ao Espírito Santo, diz Jesus: “O Espírito da verdade, que procede do Pai…” (Jo 15,26).
Vejamos, pois, o que é uma processão.
— É simplesmente a origem de um ser a partir de outro. Não implica relação de causalidade entre um e outro. Por exemplo, a luz e o calor procedem de uma lâmpada acesa (há relação de causalidade no caso); a estrada Rio-São Paulo procede do ponto A (não há relação de causalidade entre o A e a estrada, mas há uma processão ou procedência).
Há dois tipos de processão: a transeunte e a imanente.
Na processão transeunte, o termo que procede sai do princípio donde procede. É o que ocorre quando alguém escreve uma carta (esta sai para fora da pessoa que escreve), quando alguém confecciona uma obra de arte…
Na processão imanente, o termo que procede permanece no sujeito donde procede. É o que acontece com nossas ações vitais: o conhecer, o querer, o ver, o ouvir… A ação permanece no sujeito como perfeição deste. Por exemplo, quando admiro uma paisagem, nada sai de mim; não obstante, realizo uma atividade, olhando, refletindo, imaginando…, que me enriquece interiormente.
Dentre as ações imanentes, as mais nobres são as da vida intelectiva: o conhecer intelectivo e o querer (que decorre do conhecimento).
Observemos o que ocorre em nós: nosso eu é dotado de intelecto (mediante o qual somos chamados a conhecer a verdade) e de vontade (mediante a qual queremos e amamos a verdade, que é um bem). ([3]) Conhecemos verdades parciais e amamos, com a nossa vontade, cada verdade descoberta. Assim nossa vida é uma contínua procura da verdade (mediante a inteligência), que suscita em nós momentos de gozo e deleite (amor).
Transponhamos essa realidade para Deus, já que somos imagem e semelhança dele.
Em Deus não existem processões transeuntes (pois estas implicam imperfeição), mas há processões imanentes. Sim; em Deus há um conhecer intelectivo e um querer (que é também amor). Todavia Deus não conhece a Verdade pouco a pouco, mas num único ato Deus conhece toda a Verdade; consequentemente, com um único ato Deus ama todo o Bem.
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E qual é o objeto do conhecimento e do amor de Deus?
— É o próprio Deus. Deus não depende de criatura alguma para conhecer e amar; toda criatura começa no tempo; só Deus é eterno. Isto quer dizer: desde toda a eternidade Deus se conhece cabal e exaustivamente e, conhecendo-se, projeta uma imagem de Si, igual ao próprio Deus que a projeta (não há retalhamento nem diminuição nesta imagem); é um segundo eu em Deus, é Deus de Deus ou a segunda Pessoa da SS. Trindade. A S. Escritura dá a essa pessoa os nomes de Filho, Logos (conceito, palavra). Imagem (todo Filho é imagem e palavra de seu pai). ([4]) Tal é a primeira processão existente em Deus; há de ser entendida à semelhança do que se dá quando projetamos nossos conceitos e os contemplamos mentalmente; também tem analogia com a geração ou com o relacionamento existente entre pai e filho. ([5])
Mas a vida de Deus — como a de qualquer um de nós — não é só conhecimento. Este suscita o amor. Por isso o conhecimento que Deus tem de si, suscita o amor de Deus a esse bem, que é Ele mesmo. O amor em Deus não é um ato parcelado (em Deus nada pode ser parcelado), mas é o próprio Deus que ama, ou ainda: é o amor que o Pai tem ao Filho e que o Filho tem ao Pai. Esse amor é chamado o Espírito Santo. Tal é a segunda processão existente em Deus: é a da terceira pessoa ou do terceiro eu, que procede do Pai e do Filho; na falta de outro nome, essa processão é chamada “espiração”, pois tem por termo o Espírito.
Vemos assim que em Deus deve haver duas processões e três pessoas. Não pode haver nem mais nem menos. É importante salientar que essas processões não implicam temporalidade (antes e depois), nem hierarquia nem dependência. No único e permanente instante da eternidade. Deus se conhece gerando o seu Filho, igual ao Pai, e Deus se ama, produzindo o Amor Subsistente.
Há, pois, uma só natureza em Deus, duas processões e três pessoas. As processões, sendo imanentes, não dividem nem retalham a única natureza divina; não constituem três deuses, mas um só Deus ou uma só natureza divina, que se afirma três vezes.
A analogia assim exposta é a que mais se aproxima da vida de Deus. Os antigos escritores da Igreja propunham outras, que a seu modo ilustram a SS. Trindade.
Imaginemos um lençol de água debaixo da terra; é algo de grande, mas invisível e insondável aos olhos da criatura. Esse lençol se manifesta mediante um “olho de água”, que revela aos poucos a quantidade e a qualidade da água oculta. Por sua vez, esse olho de água dá origem a um córrego, que irriga e “vivifica” toda a terra vizinha. — Ora o lençol de água invisível representa o Pai; o olho de água, o Filho ou o Lógos, que diz o que há no lençol; o córrego representa o Espírito Santo, que comunica a todos os homens a vida decorrente da água oculta.
Imaginemos outrossim um tronco de planta com suas raízes invisíveis. É portador de uma vida, que se manifesta na flor. Esta, por sua vez, exala um suave perfume, que impregna todo o ambiente. Ora o tronco com suas raízes significa o Pai; a flor que “fala” e revela, simboliza g Filho; o suave odor representa o Espírito Santo. — Estas duas últimas imagens põem em relevo principalmente as peculiaridades de cada Pessoa divina: o Pai é o princípio sem princípio; é o Deus invisível, também chamado “Abismo” e “Silêncio”. O Filho é a imagem ou palavra do Pai; pelo Filho é que o Pai se dá a conhecer aos homens; Ele é também o mediador e o Pontífice. O Espírito Santo é Deus que atinge cada homem na sua intimidade e lhe fala ao coração; é o Artífice da santificação de cada um.
Há ainda outra maneira de figurar a SS. Trindade, muito usual na arte latina: é a do triângulo equilátero. Este apresenta uma só área, que é focalizada diversamente a partir de cada um dos seus ângulos: A, B e C; estes são iguais entre si, mas ocupam posições diversas e inconfundíveis dentro da unidade da figura.
Passemos agora a outro aspecto do mistério:
Ouça também: O Dogma da Santíssima Trindade? Como compreender?
2. As missões divinas
Em sua vida íntima. Deus é uno e trino. Conhecemos tal mistério através de sua manifestação na história da salvação. Esta nos ensina que existe um Pai, o qual nos enviou seu Filho (mistério da Encarnação na plenitude dos tempos; cf. Gl 4,4). O Pai e o Filho, por sua vez, nos enviaram o Espírito Santo como dom por excelência, como hóspede invisível de cada coração em estado de graça; cf. Jo 14,26. — Ao falar-nos desses “envios” ou dessas “missões”, a S. Escritura dá-nos à entender que são o eco temporal das eternas processões existentes em Deus.
O estudo das missões divinas dá ao tratado da SS. Trindade uma nota muito viva e concreta. O mistério de Deus aparece profundamente inserido dentro da trama da história dos homens.
O Pai não é enviado, porque não procede. É Ele quem envia o Filho como Salvador, nascido de Maria Virgem. “Quando chegou a plenitude dos tempos, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para reunir os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4s). Esta é a missão visível do Filho, que não implica subordinação da segunda Pessoa em relação à primeira, e que torna Deus, de modo novo e mais íntimo, presente às criaturas.
O Espírito Santo, que procede do Pai do Filho, é-nos enviado por ambos:… de modo visível, sob forma de línguas de fogo, no dia de Pentecostes (cf. At 2);… de modo invisível, à guisa de hóspede interior, no dia do Batismo de cada cristão: “Porque sois filhos, enviou Deus em nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai! De modo que já não és escravo, mas filho. E, se és filho, és também herdeiro, graças a Deus” (Gl 4,6s).
O Espírito Santo é o dom que o Pai e o Filho nos entregam como conseqüência da vitória de Cristo; Ele é o “outro Paráclito (Consolador)”, na ausência de Cristo (cf. Jo 14,16).
Vê-se assim que a santificação dos homens se faz por comunhão com a vida das três Pessoas divinas; por obra do Espírito Santo, o cristão é feito filho no Filho e, com o Filho, volta ao Pai. A piedade cristã deve saber orientar-se diante desta verdade; especialmente a sua oração há de se mover dentro do esquema: Ao Pai por Cristo no Espírito Santo.
As doxologias (fórmulas de glorificação) antigamente rezavam “Glória ao Pai pelo Filho no Espírito Santo”. No século IV, porém, surgiu a heresia ariana, que subordinava o Filho ao Pai, prevalecendo-se, entre outras coisas, de tal fórmula. Em conseqüência, os autores católicos enfatizaram outra redação: “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”, frase em que são postas exatamente no mesmo plano as três Pessoas divinas. Esta outra maneira de rezar tem seu fundamento teológico e acabou prevalecendo sobre o anterior. Todavia não nos deveria levar a esquecer o papel que toca a cada Pessoa trinitária na santificação do cristão.
Os santos sempre desfrutaram o dom que o próprio Deus faz de si a quem O procura. A bem-aventurada Elisabeth da Trindade, Religiosa carmelita (+ 1906), cultivou generosamente a consciência da habitação de Deus no cristão, deixando, entre outras, a seguinte poesia:
“Era uma noite tranquila, alto o silêncio;
O meu pequeno navio cortava o mar
De repente levantaram-se as ondas
E o frágil navio naufragou:
Era a Trindade que me absorvia.
Refúgio encontrei naquele abismo.
Mergulhada para sempre no infinito.
Aqui minha’alma respira e adormece,
Vivendo com os seus ‘três’ no tempo eterno”.
Assista também: A revelação de Deus como Trindade
3. As apropriações
Chamamos “propriedades” certos predicados que convêm, de maneira exclusiva, a uma Pessoa divina: assim a inascibilidade e a paternidade, ao Pai; a filiação, o ser Palavra, o ser Imagem, ao Filho; a espiração passiva, o ser Amor e o ser dom, ao Espírito Santo.
Na Liturgia e na S. Escritura ocorrem também apropriações. Apropriação é o ato.de atribuir a determinada Pessoa Divina um predicado comum às três; essa apropriação se faz na base da semelhança que tal predicado comum tem com alguma propriedade. Dizemos, por exemplo, no Credo: “Creio em Deus Pai todo-poderoso. Criador do céu e da terra…”; na verdade, as três Pessoas são igualmente poderosas e criaram o mundo; todavia parece que o ato de criar tem especial afinidade com o Pai, porque este é o Princípio sem princípio ou o Alfa em Deus. — Ao Filho é apropriada a Sabedoria (1Cor 1,24), não porque só Ele seja sábio, mas porque Ele é a Palavra do Pai. — Ao Espírito Santo é apropriada a santificação dos homens, não porque esta seja obra exclusiva da terceira Pessoa, mas porque o Espírito é a consumação da vida trinitária ou o ósculo entre o Pai e o Filho; ora santificação implica consumação no amor. São numerosas as apropriações que a piedade cristã tem efetuado em seus hinos e textos litúrgicos.
Dom Estêvão Bettencourt
Revista Pergunte e Responderemos. n.344. Jan. 1991.
Fonte: cleofas.com.br
[1] Há quem diga popularmente: Se 1 + 1 + 1 = 3, como ó que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo não são três deuses? Na mesma linguagem popular pode-se responder: 1 + 1 + 1=3, mas 1 XJ X 1 = 11 — Assim se desfaz a objeção mal concebida.
[2] Não confundir com procissão, que é uma cerimônia religiosa. Processão vem de proceder e só se usa na linguagem teológica trinitária.
[3] A filosofia ensina que o Ser, na medida em que é considerado pela inteligência, é Verdade e, na medida em que é desejado pela vontade, ó um Bem.
[4] Cf. Mc 1,11 (Filho); Jo 1,1 (Logos); Cl 1,15 (Imagem).
[5] É de notar, aliás, que o mesmo verbo conceber se aplica tanto à concepção de noções ou ideias quanto à concepção de um filho. O pensador concebe um projeto mental; a mãe concebe um filho.
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