Acompanhe as “batalhas interiores” travadas por Santo Agostinho para deixar a vida de pecado e abraçar o seu chamado à vida cristã.
17 novembro 2023
FOTO: CATHOPIC
Neste oitavo livro das Confissões, Agostinho narra como ia se libertando das ambições seculares, mas ainda encontrava-se preso ao vínculo conjugal, que o impusera as obrigações próprias de quem tem esposa. Relata como teve quebrados os grilhões que o acorrentavam, impedindo-o de realizar uma conversão determinada. Os embates que se dão a nível espiritual e psicológico são dramáticos, culminando com a leitura bíblica, que descortinou a graça a seu favor.
Aqui é o centro das Confissões, o livro mais importante, pela rica e detalhada descrição do salto da para a fé deste gigante. Cada parágrafo vale a pena! A vida monástica, Santo Antão, sua agonia no jardim, os personagens Simpliciano e Ponticiano são degraus nesta escada. É emocionante e não tem como ler, sem olhar para nossa vida pessoal, indiferente à luta espiritual travada por Agostinho e seu magnífico desfecho.
Encontro com o pai na fé
Agostinho narra o encontro dele com Simpliciano, pai na fé de Santo Ambrósio. Diante deste renomado e sábio cristão, versado nas artes liberais, procura aconselhamento, buscando firmar sua convicção, mas ainda vacila na direção de uma conversão decidida. Dos lábios de Simpliciano, escuta como se deu a conversão progressiva de Vitorino, outrora participante de cerimônias sacrílegas e idolátricas. Vitorino, ao afirmar-se cristão, escuta dos lábios de Simpliciano: “enquanto não estiveres na Igreja de Cristo, não te poderás chamar assim.”
Qual o intuito por trás daquela provocação? A fé deveria ser professada publicamente em meio a um Roma paganizada e idolátrica, uma Babilônia, na qual seus cidadãos não se envergonhavam de prestar culto aos demônios. Para Simpliciano, a conversão de Vitorino só se efetivaria com a assunção pública de sua identidade cristã em uma época em que não faltavam o desprestigio e o desprezo por esta nova luz que despontava no império: a fé cristã!
A conversão de Vitorino
Vitorino, chamado a fazer a sua profissão de fé, teve a opção de fazê-la privadamente para que lhe fossem evitados contratempos e constrangimentos. Ele, porém, corajosamente, desejou fazê-la perante a assembleia dos santos, pois como, outrora, defendia no ensino da retórica, publicamente, suas sentenças, não queria se ocultar de confessar o cristianismo, com grande entusiasmo e dignidade. O povo cristão, com grande louvor o aclamava, levando-o, com alegria, em seus corações: “Vitorino, Vitorino!”
Há duas analogias bem interessantes, que Agostinho faz ao analisar a conversão de Vitorino e a de São Paulo Apóstolo. Interessante observar como ele lança este olhar a partir da sua própria alma. Indaga-se acerca de como compreender as escrituras, quando dizem que há mais alegria por um pecador convertido do que por noventa e nove justos, cita ainda a dracma perdida e a alegria do retorno do filho mais moço.
Desenvolve o seguinte raciocínio: o que estava ausente, o que foi perdido, o que se tornou padecente, carente de saciedade, de satisfação, se torna ainda mais prazeroso, evidente e marcante, quando compensado, do que nas habituais satisfações. Ele dá o exemplo de uma forte enfermidade, de uma fome severa, da ausência prolongada de algum bem.
Uma vez recuperada, a alegria e o contentamento são indizíveis. Assim, ele compara a conversão de alguém, outrora perdido para o demônio, com outro já redimido. A alegria da conversão de Vitorino foi marcante! A segunda analogia faz sobre a qualidade, a estirpe do convertido. Ainda que a conversão de um nobre e a de um cidadão comum sejam igualmente valorosas diante de Deus, quando um homem de projeção, eloquente, renuncia à soberba e faz uma profissão de fé pública, o impacto, a influência perante os outros, desperta mais pessoas a buscarem a Deus. Cita São Paulo que, embora se denomine o menor dos apóstolos, teve uma adesão ao cristianismo que impactou muitas pessoas.
A luta de Santo Agostinho
Como Santo Agostinho vai delineando sua conversão neste Livro VIII? Como um despertar do torpor, do adormecimento, após uma luta travada entre o novo e o velho que pelejam contra a vontade livre. Não é assim que dá conosco também? Está desperto, é melhor do que estar adormecido, mas por vezes, preferimos a comodidade e a preguiça, adiando o levantar, o despertar! É uma luta, pois a lei do pecado que arrasta nossos membros a fazer o que nos desagrada. Ele conclui esta parte assim: “Infeliz de mim, quem me libertará deste corpo de morte, senão tua graça por Jesus Cristo Nosso Senhor?” Agostinho vai sendo inspirado pela conversão de Vitorino narrada por Simpliciano.
No parágrafo 13, tópico 6, ele relata como foi sendo retirado dos desejos carnais e das ocupações seculares. Dedicava-se a estudos de retórica com os amigos Alípio, Nebrídio e com um professor de gramática, chamado Verecundo, um cidadão milanês. Ele e seus amigos estavam dedicados mais à retórica do que aos maiores ganhos que a atividade jurídica poderia proporcionar.
Mais adiante no Livro VIII, narra a visita, em sua casa, de Ponticiano, um notável concidadão africano que lhe foi ao encontro, enquanto ele estava sozinho com Nebrídio. Não recorda que assunto foram tratar.
Relata que Ponticiano, ao ver as epístolas paulinas, na casa de Agostinho, começa a falar acerca do cristianismo, mais propriamente de um famoso monge, de nome Antão. O visitante testemunha que, certa vez, ao sair para os arredores de Milão com algumas duplas de amigos para caminhar, relata como dois deles descobriram uma cela monástica.
Adentraram lá e se depararam com homens penitentes e piedosos, vivendo em pobreza, mergulhados na vida de oração. Isso os impressionou muito! Encontraram então um escrito com a biografia de Santo Antão, leram e profundamente comovidos interiormente, decidiram abraçar aquela vida bem-aventurada, que começava a despontar no ocidente.
Doutrinas sem coração
Ponticiano descreve que estes amigos tinham até noivas e na vida secular teriam expectativas de alcançar posição social privilegiadíssima, podendo chegar a serem amigos do imperador.
Tal relato, além da conversão de Vitorino, ia “mexendo” interiormente com Agostinho que, contrastando com aquela urgência e determinação, adiava dia a dia a sua conversão, numa postergação própria de adolescentes. Quanto à castidade, ele ia “empurrando para a frente”, conforme descreve o que se passava em seu âmago: ‘ “Concede-me castidade e continência, mas não agora”. Com efeito, receava que tu me atendesses logo, e logo me curasse da peste’.
Certo dia, inclinado sobre a própria consciência, sentiu que as palavras de Ponticiano refletiram de tal sorte em si, que começou a sentir vergonha de si mesmo. Além disso, imaginava terem sido inúteis os mais de doze anos de estudo de filosofia, de busca da sabedoria, se a sua própria alma, ele não era capaz de arrastá-la à uma tomada de decisão que o levasse à verdadeira felicidade. Penitenciou-se e sofreu bastante nesta ocasião!
Sentindo-se desafiado interiormente, volta-se para Alípio, dizendo: ‘ “Que toleramos? O que é isso? Que ouviste? Os ignorantes se levantam e conquistam o céu e nós, com nossas doutrinas sem coração, eis onde nos revolvemos na carne e no sangue! Envergonhamo-nos de segui-los, porque nos precederam, e não nos envergonhamos de nem sequer segui-los?” ’
Duas vontades
Aflige-se diante da vontade fragmentada ao afirmar: se a alma ordenar ao corpo, facilmente este a obedece; mas se a alma ordena a si mesma que faça algo, por vezes, esta não a obedece, pois está dividida, como se houvesse duas vontades: a que ordena e a que realiza. Às vontades conflitantes, contraria a doutrina dos maniqueus que pareciam afirmavam haver duas vontades, uma boa e a outra má naquela ambivalência dualista. Como explicamos no livro V das Confissões, os maniqueus afirmavam o pecado ser uma escolha de uma substância presente no homem, mas estranha a ele. Não são duas almas presentes no homem, para que se justifiquem duas vontades.
A vontade do homem é que é corrompida e os desejos por vezes são diversos, havendo, às vezes, mais de duas vontades a se colidirem, visto serem tantas as ambições humanas. Para ele a compreensão da fragilidade da vontade se dá pelo fato de sermos filhos de Adão. O comprometimento da vontade livre para buscar o bem, a quebra da unidade do querer e do executar se dá como reflexo da fragmentação, da divisão interior no homem, como herança da queda original.
Como há duas vontades, uma boa e uma má? A doutrina maniqueísta aqui é contrariada, quando se apresentam no homem vários desejos maus, que conflitam entre si: a chance de furtar um bem, de ser luxurioso, de ser avarento, de ir a espetáculos circenses ou ainda de roubar a casa alheia. São quatro os espíritos que desejam tais coisas? E quanto ao bem? Pode se desejar realizar uma leitura bíblica, fazer uma pregação, ouvir uma música. E quando as coisas celestiais estão em conflito com boas coisas lícitas? Que hierarquia deve ser aplicada? Enfim, embora o homem esteja dilacerado, é ele, um só, que padece de sua fragmentação, da perda de sua unidade.
Tentações
Agostinho se debatia de um lado para o outro em uma frenética luta entre a adesão determinada da conversão e a relutância em concretizá-la. Romper o laço tênue que o prendia era o grande desafio. Sentia que havia chegado a hora de avançar, mas recuava. Em suas próprias palavras:
“25.Assim sofria e me torturava, acusando a mim mesmo com mais dureza do que nunca, revirando-me e debatendo-me para romper definitivamente o laço que já me prendia apenas por um fio; mas ainda me prendia. E tu me pressionavas por dentro, Senhor, com misericórdia severa, alternando os flagelos do medo e da vergonha, para que não desistisse de novo e não deixasse de romper aquele laço exíguo e tênue que ainda restara, e ele não voltasse a se fortalecer e a me prender com maior força. Pois eu dizia dentro de mim: “Agora vai acontecer, agora vai”, e já ia me dispondo conforme minhas palavras. E quase me decidia, e não me decidia, porém não recaía na situação anterior, ficava perto e retomava o fôlego. Voltava a tentar e por pouco não chegava lá e por pouco, já, já, não alcançava e conseguia; mas não chegava lá, nem alcançava nem conseguia, hesitando em morrer para a morte e em viver para a vida, e dentro de mim o que era pior, porém familiar, tinha mais força do que o melhor, mas insólito, e aquele preciso instante em que algo novo aconteceria, quanto mais se aproximava, tanto mais me despertava repulsa; mas não recuava nem me esquivava, apenas permanecia em suspenso.”
Nesta comovente luta interior, Agostinho retrata com tamanha clareza, o que se passava em sua alma. Ouve as vozes da tentação, dizendo-lhe que não resistiria, que sucumbiria diante dos apelos dos prazeres carnais. Desestimulavam-no a avançar: “Vais nos deixar?” (vozes de mulheres? Talvez). Entre outras palavras, indagavam-no como ele viveria sem o usufruto de tais gozos. A antítese destas provocações foi a visão da continência com a consequente quietude e paz que residem numa alma casta. Era como uma dama elegante que lhe estendia a mão, acompanhada do entendimento de que a graça divina2 o poderia modificar. Uma voz encorajadora e estimulante começava a sobressair-se.
Em meio a esta lancinante batalha, sentiu um impulso de chorar amargamente, banhando-se em lágrimas neste conflito de si contra si mesmo. Chorou muito sob uma figueira.
Luz da fé
m seguida, ouviu uma voz, vinda de uma casa, que dizia: “pega e lê”. Agostinho volta-se para onde estava, ao lado de Alípio, abre as epístolas paulinas e lê o primeiro versículo onde pararam seus olhos, onde encontra o seguinte: “não em orgias e bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem em rixas e ciúmes, mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne.” Tendo acabado de ler, sentiu uma luz penetrante em seu coração. Junto a Alípio, leu ainda o seguinte complemento, com seu amigo: “acolhei o fraco na fé.”
Em seguida foi contar à sua mãe, que havia sido finalmente conduzido a Deus. Após tantas fadigas, o que foi decisivo para o Santo foi a ação poderosa da graça, que transbordou por meio das letras sagradas, coroando o chamado divino, que será belissimamente retratado no poema “Tarde te amei”, no livro X.
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Fonte: comshalom.org
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