Sempre de zelo extremo na defesa da honra divina, São Miguel nunca deixa, igualmente, de proteger o Corpo Místico de Cristo, sobretudo nos momentos de maior perigo.
São Miguel esmaga o demônio – Igreja de São Miguel, Gante (Bélgica). foto: Francisco Lecaros
Redação (28/09/2024 08:46, Gaudium Press) Era ainda o começo da criação, e os Anjos encontravam-se no estado de prova. Transbordando de amor para com estas obras de suas mãos, Deus decidira, conforme é opinião estendida entre teólogos de renome, revelar-lhes os planos que levava em seu coração: a Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e a eleição de uma criatura humana perfeitíssima como sua Mãe, a qual seria a Rainha não só dos homens, que ainda estavam por ser criados, mas de todo o universo, inclusive dos seres angélicos.
A sublime revelação constituiu um fator de divisão entre os puros espíritos: alguns a aceitaram, outros rejeitaram. Os revoltosos eram capitaneados pelo maior dos Anjos: Lúcifer. Este, não querendo submeter-se a uma natureza inferior à sua, vociferou: “Non serviam! – Não servirei!” Suas palavras mal acabavam de ecoar pelos Céus, quando São Miguel respondeu à afronta com um brado mil vezes mais possante: “Quis ut Deus?! – Quem é como Deus?!” À voz do Príncipe da Milícia Celeste, os Anjos bons se congregaram sob seu comando para expulsar do Paraíso aqueles que ousaram alçar-se contra os desígnios do Criador. A vitória revelou-se estrondosa.
Teólogos ilustres, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, situam esse grande confronto no primeiro dia criação, narrado no Gênesis: “Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas” (1, 4). Entretanto, basta continuarmos a leitura do Livro Sagrado para compreender que a guerra estava apenas começando…
Lúcifer e seus sequazes não se renderiam facilmente: eles queriam vingança e se serviriam do gênero humano – tão ligado à própria causa de sua revolta – para levá-la a cabo. Com efeito, a vitória não mais dependeria somente da força de ação dos espíritos angélicos, mas de como reagiria perante ela a fraqueza humana. E o ataque inicial infligido pelos anjos maus neste novo cenário traria como funesta consequência o pecado que acarretou a maldição para toda a humanidade.
No decorrer da História, as investidas do demônio contra a realização dos planos divinos não fizeram senão crescer. Tendo conquistado o consentimento de tantas almas às solicitações infernais, o inimigo se gabou dos vícios e pecados em que, por ele instigados, os homens se afundavam.
Durante todo este tempo, porém, São Miguel não ficou inerte.
Arcanjo de Israel… e do “Novo Israel”
Estava nas mãos desse “Grande Príncipe” (Dn 12, 1) a missão de custodiar a nação eleita. Tão excelente patrono foi o sustento dos patriarcas, a inspiração dos profetas, a consolação dos justos, enfim, a defesa dos filhos de Israel. Que privilégio, até mesmo para um Anjo, ter o encargo de guardar o povo do qual nasceria Maria Santíssima e, d’Ela, o “Primogênito de toda a criação” (Col 1, 15)!
Sim, que privilégio e, perdoe-nos São Miguel, que desgosto… Como imaginar que da mesma nação eleita surgiriam os sicários do Messias? Pois o impensável se deu: o Arcanjo viu seu Senhor ser crucificado e morto por aqueles dos quais era o custódio. Neste auge de maldade, o Patrono de Israel ainda estava ali, inspirando dor e arrependimento àqueles corações empedernidos.
Fez-se a escuridão em pleno dia, houve terríveis tremores de terra, o véu do Templo se rasgou. Por que não ver também nesses acontecimentos, a indignação de São Miguel contra o infame pecado de deicídio? Tais calamidades pareciam um eco, nesta terra, daquele brado que ressoara na abóbada celeste e fizera temer os anjos revoltosos, precipitando no abismo o espírito outrora “portador da luz”, Lúcifer. Com efeito, eram agora os judeus infiéis que, imitando a atitude do chefe dos demônios, clamavam: “Não servirei!” (Jr 2, 20). Assim como o anjo revoltado, as autoridades do povo deicida perderiam a honra de irradiar a luz da Divina Revelação ao mundo, e seriam lançadas nas trevas do erro, pois “um véu cobre-lhes o coração” (II Cor 3, 15).
No momento, porém, em que do lado aberto do Salvador jorrou sangue e água, nascia o povo da Eterna Aliança, o “Novo Israel”, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, da qual São Miguel se tornava o protetor.
Zeloso defensor da Santa Igreja
Hermas, personagem bastante singular, antigo escravo grego e irmão do Papa Pio I, escreveu uma das obras primevas da literatura cristã, chamada O Pastor.
Este livro muitíssimo apreciado – diríamos mesmo venerado – pelos fiéis dos primeiros tempos, está repleto de narrações de experiências místicas, numa das quais fica bem delineado o intimíssimo relacionamento entre São Miguel e a Santa Igreja ainda em seu nascedouro: “O Anjo grande e glorioso é Miguel, que detém o poder sobre este povo e que o governa. É ele quem dá a lei e a insere no coração dos que creem”.
Sem dúvida, o Corpo Místico de Cristo necessitava de um guardião possante para não abandonar a Lei Divina em face das batalhas que viriam. O demônio, levado por seu ódio implacável contra o Cristianismo, não perderia um instante e buscaria sufocá-lo logo em seus primeiros anos de vida.
Nas épocas antigas, a Igreja viu-se obrigada a se esconder nas catacumbas; ser cristão era considerado um crime abominável. Que o digam os romanos, os quais tinham por diversão lançar pessoas inocentes às feras ou condená-las às formas mais cruéis de suplício, enquanto uma assembleia febricitada se entretinha com o atroz espetáculo.
Imersa em tão terrível perseguição, era difícil crer que a Igreja resistiria por muito tempo… O demônio já estava quase cantando vitória, quando uma inesperada intervenção angélica veio frustrar os seus planos.
“Com este sinal vencerás!”
Corria o ano de 312. O trono do Império Romano vacilava entre dois homens: Constantino e Maxêncio. Embora ambos fossem pagãos, o primeiro deles nascera de uma mulher cristã: Santa Helena. Decidiu ele avançar contra Roma, a fim de tomá-la das mãos de seu rival.
Após vários dias de marcha forçada, seu pequeno exército de quarenta mil homens não estava nas condições mais favoráveis para iniciar combate contra um adversário numericamente muito superior.
Inseguro, o filho de Helena resolveu buscar o auxílio do alto: rezou ao Deus de sua mãe. Quando concluiu a oração, pôde divisar no céu uma imensa cruz luminosa, onde se lia esta frase em grego: “Com este sinal vencerás”. Na noite seguinte, a visão se repetiu em sonho e Constantino, percebendo que se tratava de um acontecimento sobrenatural, ordenou que se fizesse um estandarte em forma de cruz para liderar as fileiras de seu exército.
A batalha se deu no dia 28 de outubro e, não obstante os maus prognósticos, Constantino esmagou as tropas de Maxêncio.
Um ano depois, em 313, como sinal de gratidão pela milagrosa vitória, o soberano assinava o Edito de Milão, através do qual punha fim às perseguições contra a Igreja e concedia liberdade de culto aos cristãos. Finalmente, a Religião verdadeira podia respirar um ar diferente daquele das catacumbas.
Contudo, foi somente em 314 que Constantino pôde compreender por inteiro a causa de seu êxito. Em sonho, apareceu-lhe um homem envolto em luz a lhe dizer: “Eu sou o Arcanjo Miguel, o comandante da milícia celeste, o protetor da fé dos cristãos. Era eu que, enquanto tu combatias contra os ímpios tiranos, tornava as tuas armas vitoriosas”.
Uma Mulher vestida de sol
Haveria ainda inúmeros exemplos da infalível ação do Arcanjo ao longo da História, mas é impossível enumerá-los todos. Felizmente, o Espírito Santo nos concedeu um compêndio admirável a esse respeito, em uma cena descrita no Livro do Apocalipse.
No início do capítulo doze, São João relata uma visão grandiosa: aparece no firmamento uma Mulher vestida de sol, coroada com doze estrelas e tendo a lua sob os pés. Ela está grávida e geme em dores de parto. Surge então outro grande sinal: um Dragão, cor de fogo, que se põe em frente à Mulher, a fim de devorar seu filho logo que viesse à luz. Ela foge para o deserto, onde Deus lhe havia preparado um refúgio. Imediatamente após essa descrição, o Apóstolo Virgem acrescenta: “Houve uma batalha no Céu. Miguel e seus Anjos tiveram de combater o Dragão. O Dragão e seus anjos travaram combate, mas não prevaleceram. E já não houve lugar no Céu para eles” (12, 7-8).
Trata-se de cenas muito enigmáticas – como, aliás, todo o Livro do Apocalipse –, mas chama a atenção o fato de São João as ter narrado juntas. O Dragão que persegue a Mulher é o mesmo que foi derrotado por São Miguel, e a luta entre os dois se dá em função dela: aquele a ataca, este a defende.
Quem será esta Mulher misteriosa? A própria Virgem Maria? Muitos o afirmam; é uma aplicação tradicional e belíssima, mas não a única. Alguns Padres da Igreja e escritores eclesiásticos encontraram razões para acrescentar outra interpretação: a que identifica a Mulher com a Santa Igreja.
Assim como Dama do Apocalipse foi perseguida pelo Dragão, a Igreja é atacada pelo demônio e seus asseclas. E, da mesma forma que São Miguel derrotou o monstro que ameaçava a Mulher, ele também se mostra de um zelo extremo no que tange à proteção da Esposa Mística de Cristo, sobretudo nos momentos de maior perigo.
Vitória final de São Miguel
Quando será a última batalha? Como será esse dia feliz, em que o Dragão se verá definitivamente precipitado no abismo?
No que diz respeito ao quando, não há o que dizer; o futuro a Deus pertence… Mas sobre o como, muitas revelações privadas nos proporcionam alguma ideia.
A esse propósito, é assaz elucidativo o que afirma a Beata Ana Catarina Emmerick, grande mística do século XIX. Por entre os véus simbólicos de que a narração está repleta, podemos discernir alguns contornos do que será o embate derradeiro:
“Eu vi novamente a Igreja de São Pedro com sua grande cúpula. Sobre ela resplandecia o Arcanjo São Miguel, vestido de cor vermelha, tendo uma grande bandeira de combate nas mãos. A terra era um imenso campo de batalha. […] A Igreja era de cor sangrenta, como a veste do Arcanjo. Ouvi que me diziam: ‘Terá um Batismo de sangue’. Quanto mais se prolongava o combate, mais se apagava a viva cor vermelha da Igreja, e ela se tornava mais transparente”.
Quase três anos depois, Ana Catarina Emmerick anotará uma nova revelação, na qual fornece mais detalhes sobre essa purificação da Igreja em plena refrega:
“Eu vi a Igreja de São Pedro totalmente destruída, exceto o coro e o altar-mor. São Miguel, armado e cingido, desceu à igreja e com sua espada impediu que nela entrassem muitos maus pastores, e os impeliu até um ângulo escuro […]. Tudo o que havia sido destruído na igreja foi reconstruído em poucos instantes, de sorte que se pudesse celebrar o culto divino. Vieram sacerdotes e leigos de todo o mundo trazendo pedras para reedificar os muros, já que os fundamentos não foram destruídos pelos demolidores”.
Na época das perseguições romanas, os inimigos da Santa Igreja buscavam destruí-la pela força, pelas armas e pela perseguição aberta. Em nossos dias, porém, seus métodos parecem mais inteligentes: sabem que não podem matá-la e procuram, então, desfigurá-la tanto quanto consigam.
Mas ela nada tem a temer, pois a seu lado está aquele cuja simples presença enche de pavor os inimigos do Altíssimo. O Arcanjo São Miguel, que venceu o demônio no prœlium magnum do Céu e soube derrotá-lo incontáveis vezes na terra, proverá também a vitória fina
Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho n. 249, setembro 2022. Por Lucas Rezende de Sousa.
Fonte: gaudiumpress.org
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